O desafio do catolicismo
O fenômeno da descrença não é absoluto e ainda pulsam sinais de vida

Mudar para acompanhar os tempos ou manter a tradição para atrair fiéis pela força de um edifício espiritual construído ao longo de 2 000 anos? Esse é o dilema das religiões cristãs tradicionais, muito maior do que qualquer papa, seja ele Francisco ou seu antecessor, Bento XVI, cada qual defensor de uma das tendências. Ambos já encontraram plenamente instalado o fenômeno de múltiplas causas do refluxo que começou a se formar lá no Renascimento, quando despontou a possibilidade de pensar o mundo fora do grande arcabouço criado pela Igreja. Todos sabemos, não parou mais. Os livres-pensadores, no sentido mais amplo, ganharam a guerra das ideias. Em compensação, o desmanche da religião deixou um enorme buraco na psique humana, um vazio espiritual que toda a nossa incomparável riqueza material e a profusão de especialistas em tudo, inclusive em autoajuda, não preenchem. A única autoajuda de grande efeito em ação hoje em partes do antigo mundo católico é, justamente, a da religião evangélica reinventada, fraca em teologia, mas forte na tecnologia comportamental capaz de mudar vidas e tirar os caídos das três esferas mais comuns da perdição, a bebida, as drogas e a cadeia.
Uma mensagem forte também parece ser responsável por uma microtendência de conversões ao catolicismo mais tradicional em países altamente laicizados como a Inglaterra, a França e até os Estados Unidos. Os novos convertidos chegam por esforço próprio — ou seja, lendo coisas nas redes sociais. São, na maioria, homens jovens desconfortáveis com vários aspectos da sociedade contemporânea. Poderiam facilmente ter caído na tentação da misoginia e do hipermachismo à la Andrew Tate, mostrados na série Adolescência, com o caminho para a degradação aberto pela alta pornografia ao alcance de um toque no celular e pelo cardápio de beldades do OnlyFans que só demandam um pequeno pagamento. Buscam clareza moral, um modo de vida estruturado, respostas para as eternas perguntas.
“Mudar para acompanhar os tempos ou manter a tradição para atrair fiéis pela força do edifício espiritual?”
O mais conhecido católico convertido do momento é o vice-presidente J.D. Vance, o mesmo que gerou tanto veneno dos antitrumpistas por ter se encontrado com o papa um dia e meio antes de sua morte. Vance escreveu longamente sobre o processo que o levou à conversão, durante o qual estudou René Girard e Santo Agostinho, a quem escolheu como patrono. Não é o homem mesquinho que destratou diretamente Volodymyr Zelensky, na infame reunião na Casa Branca, que se vê nas suas reflexões. Ele divisou nas críticas de Santo Agostinho ao estilo de vida dos romanos, voltado para os prazeres carnais e o consumo, um paralelo com o que acontece nos Estados Unidos. Um trumpista agostiniano, quem diria.
Não se pode falar, diante dos pequenos números, em renascimento do catolicismo, mas é preciso admitir que poucas coisas hoje, na esfera das elites, exigem mais coragem do que abraçar uma religião, ainda mais uma como a católica, durante tanto tempo demolida pelos maiores intelectos do mundo. Mesmo para quem nem sequer pensa nesse caminho, vale a pena refletir sobre o que disse o mais arrojado, talvez alucinado, pensador católico do século passado, o francês Teilhard de Chardin: “Não somos seres humanos tendo uma experiência espiritual, mas seres espirituais tendo uma experiência humana”. Nenhum papa falaria melhor do que isso.
Publicado em VEJA de 25 de abril de 2025, edição nº 2941