Joe Biden confunde números, troca palavras, enrola a fala, dispara ideias contraditórias, é emotivo, irrita-se com a mesma facilidade com que chora. Não tem a intelectualidade refinada de Barack Obama nem muito menos o espírito agitador de Donald Trump, que, descontrolado, redundou na espiral de autodestruição do final. Decidiu começar o dia mais importante de seus 78 anos e quase dois meses convidando os quatro líderes do Congresso — do partido do governo e da oposição — para rezar na Catedral de São Mateus. O que normalmente seria recebido com cinismo e até com desprezo pelos influencers foi tratado como um ato de grande estadista. Sem nenhuma originalidade, seu discurso de posse apelou à unidade nacional e teve como principal virtude ser curto, uma raridade.
Com todas as suas conhecidas limitações, o novo presidente está com a faca e todos os tipos de queijo cheddar que podem ser encontrados na fartura estonteante dos grandes supermercados americanos na mão. Começa o mandato com maioria na Câmara, no Senado (contando o voto da vice-presidente Kamala Harris), na grande imprensa, no mundo artístico, intelectual e acadêmico. Sessenta e seis por cento dos americanos aprovam o modo como conduziu a transição — que consistiu basicamente em falar pouco e aparecer menos ainda, como na campanha. Com 36 anos de Senado e oito de Vice-Presidência no currículo, conhece muito bem como são feitas as leis — e provavelmente as salsichas também, considerando-se que vende a imagem de homem do povão, sempre disposto a tomar uma cerveja e dividir um tira-gosto com a classe operária de sua base em Delaware, o estado americano corroído pela ferrugem da desindustrialização.
“Seu discurso de posse teve como principal virtude ser curto, uma raridade”
O que poderia dar errado, perguntariam os espíritos sarcásticos. Muita coisa, claro. Em primeiro lugar, se, contrariando tudo o que disse, tratar a quase metade do país que não votou nele como se fosse igual aos abilolados que resolveram, meio no susto, entrar no Congresso e tentar praticar o “governo do povo” — sinônimo de malta no comando. Segundo, se, no ímpeto de desfazer tudo o que Trump fez, condescender com o Irã e reativar um acordo nuclear que, indiretamente, ensejou a normalização de relações entre Israel e países árabes apavorados com a expansão xiita. Terceiro, e mais importante, se não entender as dimensões da titânica competição chinesa e do que isso significa para o mundo.
Os Estados Unidos já tiveram presidentes pavorosos como James Buchanan, simpatizante da escravidão nos estados sulistas e insuflador das chamas da Guerra Civil, e Warren Harding, que conseguiu o prodígio de morrer na Casa Branca, em 1923, e, em vez de ser beatificado, acabar execrado postumamente por corrupção envolvendo direitos de exploração de petróleo em terras públicas. “Nenhum outro imbecil tão completo e abominável será encontrado nas páginas da história americana”, escreveu o venenoso H.L. Mencken depois de seu discurso de posse. Joe Biden podia ser pior. Se, com todos os seus defeitos, apaziguar os ânimos e deixar os Estados Unidos serem os Estados Unidos, sem excesso de intervenção nem de partidarismo, conseguirá ser o homem da hora.
Publicado em VEJA de 27 de janeiro de 2021, edição nº 2722