Todo dia cai 1 bilhão de dólares nos cofres da Arábia Saudita. É o petróleo a quase 115 dólares o barril, com demanda em alta e oferta em baixa, que produz a benesse.
O mesmo petróleo produz outro milagre: a reabilitação de Mohammad Bin Salman, o príncipe herdeiro que assumiu o controle total da Arábia Saudita depois que a saúde – e muitas maquinações do filho – tiraram o pai da cabine de comando.
Emmanuel Macron foi visitá-lo em dezembro, Boris Johnson em março e Joe Biden irá agora em julho. Quase tão incrivelmente, MBS – ou “emmbiess”, como é universalmente chamado – desembarcou na Turquia e foi recebido com honras pelo presidente Recep Tayyp Erdogan, como se nada tivesse acontecido.
Os dois países chegaram perto da ruptura depois de um dos mais mal sucedidos assassinatos políticos de todos os tempos, a morte por estrangulamento, seguida pelo esquartejamento do corpo, jamais encontrado, de um oposicionista sem muito destaque, Jamal Khashoggi, operador político e jornalista que, no exílio, passou a colaborar com uma coluna mensal para o Washington Post.
Qualquer mal que Khashoggi pudesse causar à imagem de MBS como colunista não se compara nem remotamente ao estrago feito por sua morte, hedionda nas mãos de uma equipe da inteligência saudita que conseguiu o prodígio de se deixar filmar e gravar pelos órgãos de informação da Turquia.
Assim, o mundo inteiro ficou sabendo que os quinze assassinos trapalhões foram enviados num jatinho, depois que Khashoggi marcou data, em 2 de outubro de 2018, para pegar seu atestado de divórcio no consulado saudita em Istambul. Pretendia se casar novamente e deixou a noiva esperando na porta, do lado de fora. Em vez disso, foi estrangulado e esquartejado por um “especialista” que levou um equipamento do tipo usado por legistas.
Com o crime revelado em detalhes – exceto pelo misterioso desaparecimento do corpo -, o príncipe fez um julgamento armado para enquadrar os executores e eximir o mandante.
Joe Biden caprichou na condenação à barbárie quando era candidato e queria incriminar Donald Trump pela extrema proximidade que cultivou com MBS.
A realpolitik agora bateu à sua porta. O presidente americano não está errado – além, obviamente, como todos os políticos, de ter interesse máximo em controlar os preços enlouquecidos dos combustíveis, um dos mais conhecidos fatores de incineração de carreiras de líderes que dependem do voto popular.
Biden, com todo o peso dos Estados Unidos, vai defender não só os interesses de seu país como, indiretamente, os do resto do mundo, inclusive nós, brasileiros, assolados por preços sufocantes – e que podem subir mais ainda.
Quando a Arábia Saudita, que domina 15% da produção mundial de petróleo, abre mais a torneira, os preços recuam.
Do ponto de vista do pragmatismo e do interesse geopolítico em não desestabilizar o equilíbrio de poder nos países atrelados ao preço internacional do petróleo, faz todo o sentido.
Do ponto de vista moral, obviamente, é discutível.
A Arábia Saudita não só tem o petróleo na mão, como é um país vital para o Oriente Médio expandido. No governo Trump, facilitou a abertura de outros países do Golfo Pérsico para Israel e, se negociações de um acordo com os palestinos evoluíssem, também daria o grande passo.
Na prática, já tem uma aliança tácita com Israel, ditada pelo interesse comum em não fortalecer o grande inimigo, o Irã dos aiatolás xiitas que não só controla a Síria e o Líbano do Hezbollah, em contraposição aos sunitas, como está a um passo de produzir sua bomba nuclear.
Um Irã atômico mudaria todo o mapa geopolítico do Oriente Médio e do mundo.
Mohammad Bin Salman, que tem 36 anos, consolidou seu poder como herdeiro oficial em 2017 e contratou os alguns dos maiores especialistas do mundo em relações públicas para promovê-lo como um modernizador que abriria gradualmente um país dominado pela mais conservadora versão do Islã sunita.
A ouvidos ocidentais, soa até ridículo, mas permitir que mulheres dirijam e não sejam obrigadas a se cobrir inteiramente de negro, incluindo o rosto, em público trazia uma pequena revolução. Jovens sauditas descobriram maravilhados que podiam fazer em seu país o que só viagens ao exterior propiciavam, como shows de música – e sem separação estrita entre os sexos.
MBS também tem planos extremamente ambiciosos de transformar a Arábia Saudita numa atração turística com polos de alta tecnologia – uma guinada tremenda num país que só admite a entrada de estrangeiros com contrato de trabalho ou em peregrinação aos lugares santos da religião muçulmana, Meca e Medina.
A posição de guardiã dessas veneradas cidades, os mais importantes da vida de revelações do profeta Maomé, dá à Arábia Saudita uma importância única no mundo islâmico – sem contar toda a dinheirama do petróleo.
Paralelamente à abertura, MBS mandou prender, em hotéis de luxo, alguns dos maiores milionários do país e venceu a luta de cimitarra no escuro entre os próprios exigentes e mimados príncipes da enorme família real saudita.
Hoje, todo mundo beija sua mão, inclusive, em cenas constrangedoras, os filhos de Jamal Khashoggi, também “recompensados” com mansões e pensões mensais na casa dos cinco dígitos, em dólares.
MBS deve sua reabilitação inteiramente a Vladimir Putin. Ao invadir a Ucrânia, o chefão russo alterou drasticamente o equilíbrio energético mundial.
O que é mais importante: castigar o príncipe saudita por um crime bárbaro e burro ou permitir que a Europa supere gradualmente a “russodependência”, tirando da Rússia seu mais importante instrumento de chantagem?
Quando a Alemanha, que tem na coalizão de governo o Partido Verde, volta a queimar carvão, como está acontecendo agora, a crise é brava.
Os Estados Unidos “têm hoje um objetivo que é o mais importante do que qualquer outra coisa, que é derrotar Putin”, disse ao site Politico o deputado democrata Tom Malinowski.
“Como superpotência, temos que garantir que nossos estados clientes que dependem de nossa segurança continuem do nosso lado nessa disputa crucial e façam sua parte para garantir que Putin fracasse”.
É difícil encontrar uma definição mais realista do que essa dos motivos da reabilitação do príncipe que foi de pária a pop, de novo, bem antes de completar 40 anos.