Centenas de homens morrem diariamente nos campos de combate, civis inocentes são bombardeados em sua casas e a praga da guerra espalha por toda a Ucrânia seus vapores mefíticos. É hora de fazer piada?
Ievgueni Prigozhin, chefe do grupo Wagner, mercenários que funcionam como uma força terceirizada, acha que sim. Depois de mandar milhares de prisioneiros que trocaram a cadeia pela esperança da anistia como bucha de canhão, Prigozhin tem certeza que está perto de tomar a localidade de Bakhmut.
Tão certo que “desafiou” Volodymyr Zelensky para um duelo aéreo que decidiria o destino do lugar. “Amanhã, vou pilotar um MiG-29. Se você quiser, vamos nos cruzar no céu. Se você ganhar, fica com Artiomovks (Bakhmut). Se não, nós avançamos até o Dnipro”, disse num vídeo feito na cabine de comando de um avião de guerra.
Parece um palhaço falando, mas o propósito não tem nada de engraçado. Prigozhin, que ascendeu de presidiário a dono de um restaurante onde servia Vladimir Putin e convidados importantes, saltando daí à fortuna como fornecedor de alimentação para o Exército e criador do grupo Wagner, tem vários papéis importantes.
E talvez o maior deles seja ser usado por Putin para “equilibrar” o poder dos militares de carreira. É um clássico da Rússia, sobretudo no período soviético, jogar diferentes forças no caldeirão para que nenhuma delas se torne a detentora da palavra final. Stálin foi o mais consumado praticante dessa tática, com comissários políticos implantados em cada uma das unidades militares – e com poder de fuzilamento, à altura daqueles tempos sombrios.
Já ficou mais do que claro que a hierarquia militar e o Ministério da Defesa se sentem mais do que desconfortáveis com o papel agressivo de Prigozhin, que nas últimas três semanas tem propalado a tomada de Bakhmut com suas próprias forças mercenárias, incluindo os presidiários libertados em troca de seis meses na frente de combate.
O exibicionismo de Prigozhin pode ter também uma outra utilidade. Segundo alguns analistas militares, os russos estão usando a mesma tática diversionista vitoriosa dos ucranianos quando retomaram a cidade de Kherson: fingem que estão concentrados em Bakhmut enquanto preparam na verdade uma grande ofensiva qual a qual pretendem mudar os rumos da guerra quando completar um ano, no próximo dia 24.
De valor estratégico discutível, Bakhmut ganhou importância simbólica – e, sobretudo nessa guerra, a importância dos símbolos já foi suficientemente demonstrada. Diariamente, militares ucranianos fazem postagens para comprovar que “continuamos aqui”, embora os russos pareçam estar perto do controle total.
A pequena localidade também pode definir o futuro não só de Prigozhin que, como elemento de fora do arcabouço institucional, precisa dos favores do todo-poderoso Putin para sobreviver, como do general Valeri Gerasimov, o chefe do estado-maior que foi colocado no comando direto das forças invasoras.
“Prigozhin é o ator mais fraco – e por isso precisa latir mais alto”, segundo Anna Arutunyan, escrevendo na Spectator. “Embora seja popular no campo dos falcões, tem muito menos proteção do que o ministro da Defesa, Serguei Shoigu, ou qualquer um dos generais de Putin”.
A analista acredita que o homem que foi conhecido como o chef de Putin também pode ser usado como bode expiatório caso algo dê muito errado.
E daí não haveria mais ninguém rindo das piadas dele.
A próxima etapa da guerra deve mudar o quadro com o qual, de certa maneira, nos habituamos – o ser humano se adapta a tudo. A Ucrânia tem que se preparar para ataques mais violentos, exatamente num momento em que também exibe vulnerabilidades como a situação indefinida sobre o ministro da Defesa, Oleksi Reznikov, que está cai não cai por causa de uma investigação que apurou corrupção em contrato de fornecimento de rações para o Exército.
Ironicamente, o mesmo setor que fez a fortuna de Ievgueni Prigozhin. Sem os contratos camaradas, o russo perde a origem de seu poder. E sabe perfeitamente bem disso. Entre tantos destinos que essa guerra vai alterar, o dele é um dos mais interessantes de acompanhar.