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O reality show não pode parar

O espetáculo da monarquia exige fusão de público e privado

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 3 jun 2024, 17h04 - Publicado em 31 mar 2024, 08h00
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  • Quem votou em Kate? Ela não canta, dança ou representa, tanto que muita gente só ouviu sua voz pela primeira vez quando anunciou estar com câncer. Nos eventos públicos, é a grande personagem de uma espécie de reality show sem áudio: recebe flores e autoridades estrangeiras, visita escolas e hospitais, participa dos estranhos ritos da monarquia britânica que envolvem equinos e humanos em uniformes coloridos, patrocina boas causas e cumprimenta infindáveis vezes o público atraído pelo “pó mágico” da monarquia (não aquele em que todo mundo está pensando). Por que tanta gente sentiu que estava sofrendo um golpe pessoal quando ela anunciou a doença e o tratamento que a tiraram da esfera pública e a trancaram na esfera privada, na qual a monarquia fenece sem os vasos comunicantes que a tornam, ao mesmo tempo, uma instituição de tradição milenar e a representação viva, quando não borbulhante, da nação? Porque a família real é um arquétipo de todas as famílias.

    Inúmeros pensadores já tentaram decifrar os mistérios que garantem a sobrevivência de um sistema tão anacrônico. Uma das melhores tentativas foi feita por Roger Scruton, o filósofo do conservadorismo chique. “Não tendo sido eleito pelo voto popular, o monarca não pode ser visto como o representante apenas da geração atual. O monarca é, no sentido verdadeiro, a voz da história”, analisou. “Isso não significa que reis e rainhas não possam ser loucos, irracionais, egoístas ou tolos. Significa, ao contrário, que devem sua autoridade e sua influência precisamente ao fato de que falam por algo que vai além dos desejos atuais de eleitores atuais.”

    “Por que tanta gente sentiu como um golpe pessoal? Porque a família real é um arquétipo de todas as famílias”

    A questão do poder intangível da realeza fica complicada quando tem gente ganhando dinheiro, e não apenas o prazer mesquinho de fazer fofoca com famosos, para explorar a boataria que o “desaparecimento” de Kate provocou. E “atores hostis” como Rússia e China insuflam o conspiracionismo para enfraquecer as instituições. O jogo é pesado. É também injusto que uma mulher de 42 anos fazendo quimioterapia, com todos os efeitos que o tratamento provoca, tenha que aparecer para anunciar o mau pedaço pelo qual está passando. Mas é inevitável. A fama e os privilégios de que desfruta exigem a suspensão das barreiras entre público e privado.

    Hilary Mantel, a autora da formidável trilogia sobre Thomas Cromwell, o homem que o chefe, Henrique VIII, mandou decapitar, escreveu há alguns anos que Kate parecia “desenhada por um comitê”, tinha um “sorriso plastificado” e seu único propósito era produzir herdeiros. Comparou-a a Maria Antonieta, “devorada viva pelas roupas”, cujos cabelos, segundo a lenda, ficaram brancos quando a família real francesa foi interceptada na fuga que a salvaria da guilhotina. A comparação agora soa tenebrosa diante da perspectiva de que a princesa perca os lindos cabelos. A escritora depois pediu desculpas pelas ofensas. Mas Hilary Mantel acertou quando disse que a morte da princesa Diana, a sogra que Kate nunca conheceu, foi um momento revelador em que “nossa visão clareou e vimos os arquétipos em alto e bom som, a psique coletiva em ação e os deuses puxando os cordões” do destino. Não é uma perfeita descrição da situação da atual princesa de Gales?

    Publicado em VEJA de 29 de março de 2024, edição nº 2886

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