Em que circunstâncias o leitor estaria disposto a largar tudo, tentar abrigar a família da maneira mais protegida possível e, mesmo nunca tendo encostado em nada mais letal do que uma faca de churrasco, pegar em armas para defender o Brasil de uma agressão externa? A pergunta provavelmente é feita por muitos que assistem à resistência quase inacreditável dos ucranianos, a começar pelo presidente, um humorista que transformou camiseta verde-oliva em figurino de herói, passando pelo prefeito da capital, o ex-campeão de boxe Vitali Klitschko, que regularmente dispara frases cinematográficas, do tipo “É melhor morrer do que viver como escravo”. Com 2,01 metros de altura e cara esculpida nos ringues, ele parece mais adequado ao papel do que o miúdo Vladimir Zelensky. Como bala não respeita tamanho, a resistência de ambos reflete o espírito de luta existencial que se implantou no país.
O sentimento patriótico, de luta pela sobrevivência da nação, é um dos elementos que mais causa admiração num mundo em que esse tipo de coisa parecia relegada aos pedaços piores dos livros de história, com a diluição das identidades nacionais — um fenômeno não necessariamente bom, mas supostamente inevitável e até desejável para apagar da memória os males provocados pelo nacionalismo furioso, resumido em três elementos: Alemanha nazista, Itália fascista e Japão imperial.
“O ‘patriotismo como último refúgio do canalha’, segundo Samuel Johnson, virou um chavão”
De tantas vezes ser invocada, inclusive no contexto errado, o patriotismo como “último refúgio do canalha”, segundo o pensador inglês Samuel Johnson, virou um chavão serial. Mas o caso da Ucrânia está ressuscitando o conceito de nacionalismo ruim e nacionalismo bom. Este, “um nacionalismo cívico baseado no patriotismo e no estado de direito”, na definição da autora americana Anne Applebaum. O mau, obviamente, é retratado pelos discursos sinistros, a realidade alterada, a manipulação pervertida e até as feições distorcidas de Vladimir Putin.
Como em tantas outras coisas, George Orwell deu a melhor definição dos dois fenômenos. O bom, ele chamou de patriotismo, “a devoção a um lugar e a um modo de vida específicos, que acreditamos ser o melhor do mundo, mas não desejamos impor a outras pessoas”. O (mau) nacionalismo, ao contrário, “é inseparável do desejo de poder”.
O que nos leva de volta à primeira pergunta: quem resistiria de armas na mão a um desejo avassalador desse tipo? Com uma narrativa nacional riquíssima e vencedora, ancorada numa espécie de religião cívica em que a liberdade é cultuada como valor supremo, os americanos decepcionaram na resposta. Segundo uma pesquisa da Quinnipiac, apenas 55% disseram que continuariam nos Estados Unidos e participariam da resistência; 38% simplesmente fugiriam do país. Na faixa dos 18 aos 34 anos, a “resistência” cai para 45%. “Projetando para a escala nacional, seriam 125 milhões de ianques caindo fora da Terra dos Não Mais Livres e Pátria dos Não Especialmente Bravos”, ironizou a escritora americana Lionel Shriver. Ela mesma disse que colocaria uma caixa de vinho na traseira do SUV e daria o fora. E o leitor, faria o quê?
Publicado em VEJA de 6 de abril de 2022, edição nº 2783