Se o mundo inteiro é um palco onde entramos e saímos de cena, cada um representando no seu tempo diversos papéis, chegou a hora de William Shakespeare encarnar seu personagem contemporâneo, um bicho papão daqueles, enquadrado em todos os lugares errados em matéria de raça, sexualidade, gênero e classe.
“O que está em jogo é a supremacia branca e o colonialismo”, declara um grupo de professores de literatura americanos unidos na hashtag #DisruptTexts.
Shakespeare deve ser abordado em versões abrandadas ou acompanhado de textos críticos, na concepção deles.
Elizabeth Nelson, professora de inglês na Twin Cities Academy, de St. Paul, disse a uma revista literária universitária, reproduzida pelo Washington Times, que dá aulas de teoria marxista quando fala de Coriolano, a tragédia sobre o patrício romano que se alia aos inimigos até atender aos apelos da mãe para salvar Roma (falocentrismo, violência, melancolia de gênero, supereu sádico, segundo um estudo sob o ponto de vista psicanalítico, feito pelo professor Anchyses Jobim Lopes).
Outra professora, Sarah Mulhern Gross, faz uma “análise de masculinidade tóxica” quando chega na parte de Romeu e Julieta.
Os “problemas” de Shakespeare têm sido discutidos há muito tempo, desde o sexismo de A Megera Domada até o antissemitismo de O Mercador de Veneza. Mas agora a coisa vem ficando mais complicada.
Um número crescente de educadores está chegando à conclusão que chegou a hora de simplesmente deixar Shakespeare de lado ou de “desenfatizá-lo” para abrir caminho a vozes mais modernas, diversas e inclusivas”, diz um ensaio publicado pela revista literária.
“Educadores envolvidos com essa questão estão ensinando, criticando, questionando e abandonando a obra de Shakespeare, e oferecendo alternativas para atualizar e reforçar o currículo”.
Entre as alternativas, a série Jogos Vorazes.
“Como a obra de Shakespeare é considerada paradigmática e universal, é por aí que precisa ser desacreditada. A sua remoção do currículo e da memória coletiva torna-se assim obrigatória”, disse ao Times o professor aposentado Glynn Custred, obviamente um conservador direitista que tenta lutar contra a maré.
Com sua visão quase sobre-humana a respeito tudo o que acontece no grande palco da vida, Shakespeare talvez se divertisse com o novo papel atribuído a ele, o de malvado supremacista branco.
Mas talvez não achasse tão engraçada o banimento de Chaucer, o gênio ao qual a língua inglesa tanto deve sua formação, outro escritor ocidental branco que vive dias de impopularidade no ambiente hiperpoliticamente correto das universidades.
Na de Leicester, na Inglaterra, está sendo substituído, no currículo “descolonizado”, por módulos sobre raça e sexualidade.
Como fazem todos os grandes autores, Shakespeare bebeu nas águas de Chaucer, assim como nas do contemporâneo Marlowe, outro nomão do panteão literário que está com a cotação em baixa.
“Que época terrível é esta em que idiotas dirigem cegos”, é uma das frases famosas que Shakespeare não escreveu – são loucos que governam os cegos em Rei Lear, retratando características literais de alguns personagens.
Ou talvez a era do cancelamento vá transformar os gigantes proibidões em nomes cobiçados justamente por terem sido degredados.
Tudo o que é vetado tem o gosto sedutor do proibido e talvez um estudante de literatura num futuro não muito distante pegue uma peça que começa perguntando “Quem está aí?”. E não consiga largar a história até ver o fim sanguinolento de Hamlet.
Com falocracia e tudo.