Tiozão Joe Biden pode ser presidente contra próprio partido
Aos 76 anos, conhecido pela mão boba e a fissura de cheirar cabelos femininos, o vice de Obama é tudo o que os democratas não queriam
Nos últimos 50 anos, Joe Biden nunca foi outra coisa que não político. Um sujeito simpático ao eleitorado de classe operária – americana, claro – da Pensilvânia. Católico, jeitão populista, durão em matéria de crime, identificado com reivindicações trabalhistas
Um representante perfeito da “velha política”. Ou seja, o exato oposto do que seria hoje o candidato ideal em qualquer país. O Partido Democrata, pelo qual se lança aspirante a candidato pela terceira vez, depois de ter sido deputado, senador e vice de Barack Obama, tem feito tudo para evitar o “assunto Joe”.
Isso quando adversários internos não ressuscitam hábitos bizarros, como deslizar a mão boba na cintura de mulheres e meninas e enfiar o narigão em seus cabelos para uma boa cafungada.
Muitas vezes em público, sabendo que estava sendo fotografado ou filmado. Que mulher não conhece um tiozão que se equilibra na fronteira do invasivo, fazendo-se de inocente?
Com toda essa bagagem e 76 anos (três a mais que Ronald Reagan quando foi eleito pela segunda vez, o mais velho da história), Biden lança sua candidatura com uma vantagem de dar inveja aos que querem lhe passar a perna: oito pontos de vantagem sobre Donald Trump.
Claro, se a eleição fosse hoje. No mundo pós-Trump, isso pode significar nada.
Quando Hillary Clinton confirmou o que todos já sabiam, em 2015, sua eleição era dada como sacramentada.
Ela sofreu com a concorrência de Bernie Sanders e sucumbiu ao tsunami Trump. Apesar de ter mais votos populares, tombou no Colégio Eleitoral e deixou os democratas num estado de choque do qual não saíram até hoje.
Daí a ansiedade por candidatos que tenham um ar de novidade, de mudança e renovação. Como não existe nada parecido com Barack Obama disponível, os “candidatos do novo” vão se alternando.
A onda de Beto O’Rourke, o texano que pretende encarnar uma versão contemporânea dos irmãos Kennedy, refluiu. A novidade do momento é Pete Buttigieg.
Com sobrenome impronunciável (algo como Butijijej em maltês, a misteriosa mistura de árabe com siciliano falada na ilha de Malta), ele faz campanha como “prefeito Pete”. A prefeitura é de South Bend, uma cidade do interiorzão de Indiana.
A imprensa em peso colabora com os democratas. Como Buttigieg é jovem (37 anos), aparentemente despretensioso e gay, além de ter fama de geniozinho e falar sete línguas (“Aprendeu norueguês sozinho para ler mais livros!”, derreteu-se o New York Times), está recebendo uma quantidade excepcional de cobertura favorável – e de dinheiro, o combustível das campanhas.
O sobrenome estranho vem do pai, Joseph Buttigieg, que foi de Malta para os Estados Unidos aos vinte anos depois de desistir de ser jesuíta. Tornou-se professor de teoria literária, além de tradutor e divulgador da obra de Antonio Gramsci.
Até no Brasil existe um braço da International Gramsci Society criada pelo pai do candidato. Dizem os editores da revista da associação em seu último número: “Em um contexto de agudização da crise econômica e profundos retrocessos políticos e culturais, de escalada do conservadorismo neoliberal e a irrupção do processo de fascitização em escala nacional e internacional…”
Etc etc etc. Nada que evoque nem remotamente o brilho e a acuidade intelectual do pensador italiano que têm como farol.
Como a teoria gramsciana da hegemonia cultural (mais ou menos o soft power com que os dominadores controlam os dominados, no tradicional vocabulário marxista) voltou a ser descoberta pela direita, no âmbito da guerra cultural, será que o prefeito Pete vai acabar discutindo filosofia da práxis, razão dialética e outros bichos?
Dificilmente. Mesmo formado em Harvard e Oxford, com uma bolsa com fundos deixados pelo rei dos diamantes Cecil John Rhodes, distribuída para futuros líderes (Bill Clinton teve, outro pré-candidato democrata, Corey Brooke também), Buttigieg sabe que exibir intelectualidade dominante não pega bem.
Ainda mais quando está enfrentando adversários como Bernie Sanders, outro septuagenário esperto, com um enorme fã-clube entre jovens, ricos e famosos, e Joe Biden, cobra criadíssima.
Os índices favoráveis ao “Tio Joe” (uma brincadeira com o modo como Josef Stálin era chamado na época da aliança contra o nazismo) são sólidos, mas não inabaláveis.
Nessa fase da campanha, uma etapa sempre divertida por causa do fogo amigo, ele tem feito a “rodada do perdão”, desculpando-se por “pecados” do passado como o voto que favoreceu Clarence Thomas como juiz da Suprema Corte, contra as acusações de assédio sexual feitas por Anita Hill, um caso famoso nos Estados Unidos.
Na primeira vez em que tentou ser candidato, em 1988, foi detonado por um caso de plágio. E não um plágio qualquer: fez um discurso copiado de Neil Kinnock, o líder trabalhista britânico seguidamente massacrado por Margaret Thatcher.
É claro que os políticos não escrevem os próprios discursos, mas pegou mal. Ainda mais quando o copiado é um derrotado e hipócrita, hoje plantado na Câmara dos Lordes, um lugar que sempre denunciou como ápice dos privilégios indevidos.
A imagem de sujeito simples, que precisou morar com os avós quando era criança por dificuldades econômicas do pai, foi cuidadosamente cultivada por Biden. “O homem mais pobre do Congresso” era como sempre gostou de se descrever.
As tragédias familiares ajudaram a criar a imagem simpática. Em 18 de dezembro de 1972, ele perdeu a mulher e a filhinha de um ano num acidente de trânsito. Os filhos Beau e Hunter escaparam com fraturas. Biden ficou, compreensivelmente, desequilibrado e revoltado.
Três anos depois, conheceu a professora Jill, com quem se casou e teve uma filha. Com doutorado em pedagogia e, quando Biden foi eleito vice-presidente na chapa de Obama, num gesto dirigido aos trabalhadores manuais brancos que depois votariam em Donald Trump, ela passou a exigir ser chamada, pernosticamente, de doutora Jill Biden.
Para prestigiar (ou detonar, nunca se sabe nesses casos) o vice, Obama o nomeou como enviado especial ao Oriente Médio. É difícil resumir em quantas frentes Biden fracassou.
A descida da Líbia ao caos, a guerra na Síria e a ascensão do Estado Islâmico, sem contar zero de acordo entre Israel e palestinos, aconteceram no plantão dele. Embora, obviamente, a política externa seja comandada de maneira direta pelo presidente.
Em 2015, Beau Biden morreu de câncer no cérebro aos 46 anos. O pai ficou arrasado. Numa virada estranha, um ano depois, o outro filho, Hunter, divorciado, assumiu uma relação com a viúva do irmão, Hallie.
Os negócios de Hunter Biden na Ucrânia e na China criaram uma aura de desconforto, como dizem os médicos quando querem avisar o paciente que vem coisa feia.
Joseph Robinette Biden Jr. vai ter que revisitar tudo o que aconteceu, de bom e de ruim, em sua carreira e sua vida, como todos os candidatos à Casa Branca.
Se derrubar Bernie Sanders e Pete Buttigieg, os outros dois mais cotados no momento, enfrentará Donald Trump. Os céus poderão ter piedade dele, mas Trump certamente não terá. Comecem a fazer o estoque de pipoca.