A história da pandemia ainda está sendo escrita, mas nela já estão garantidos os lugares honrosos de Sarah Gilbert, a chefe da equipe que desenvolveu a vacina de Oxford; Katalin Karikó, a cientista húngara que passou a vida pesquisando o uso terapêutico de moléculas do código genético, o método utilizado nas vacinas da Pfizer e da Moderna; e Kate Bingham, a especialista em novos remédios que coordenou a bem-sucedida campanha de vacinação no Reino Unido. Nenhuma delas, obviamente, se faz de vítima ou acha que merece mérito especial por ser mulher, embora a condição feminina tenha seu peso.
Kate Bingham, por exemplo, formada em bioquímica por Oxford e com mestrado em administração por Harvard, ficou em dúvida se era suficientemente qualificada quando o primeiro-ministro Boris Johnson a convocou para chefiar a Força-Tarefa da Vacina. Foi convencida pela filha. Especialista em apostas de risco no campo farmacêutico, ela levou a experiência no setor privado para dinamizar uma tarefa que nunca tinha sido feita antes — e que muitos, em perfeita boa-fé, julgavam ser impossível. Jamais uma vacina tinha sido desenvolvida em menos do que vários anos. Bingham assumiu o cargo — sem remuneração — no começo de abril e em 8 de dezembro a primeira pessoa a receber num país ocidental uma vacina contra a Covid-19, fora dos testes com voluntários, foi imunizada com uma dose da Pfizer-BioNTech.
“Cultura e biologia são invocadas como motivos que seguram uma equiparação total entre os gêneros”
O empreendimento conjunto da farmacêutica americana e do arrojado laboratório alemão tinha sido propelido por Katalin Karikó, depois de uma vida inteira de perda de verbas e portas fechadas porque o desenvolvimento de remédios com base no RNA mensageiro não chegava a lugar nenhum. “Quando eu sou derrubada, sei como levantar”, disse ela sobre os percalços na pesquisa da tecnologia genética sempre tão promissora na teoria e tão frustrante na prática. Quando a onda maligna da pandemia se ergueu, a bioquímica húngara baseada nos Estados Unidos estava no lugar certo: a vice-presidência da BioNTech, o laboratório alemão fundado por um casal de origem turca. Filha de um açougueiro, Katalin Kalikó deixou a Hungria poucos anos antes do fim do comunismo, levando o dinheiro da venda de seus bens dentro de um urso de pelúcia da filha — futura medalha olímpica de ouro no remo. Os mais entusiastas falam num Nobel de Química para ela e o pesquisador Drew Weissman pela descoberta da intervenção num nucleosídeo do RNAm que abriu caminho ao seu uso medicinal.
A vacina desenvolvida em Oxford pela pesquisadora Sarah Gilbert e equipe já era a mais adiantada do mundo quando explodiu a pandemia, só precisou ser adaptada para o novo coronavírus. “Só”, evidentemente, é uma figura de linguagem. Mulheres em profissões STEM (sigla de ciências, tecnologia, engenharia e matemática) são 35% da força de trabalho total no Reino Unido, uma proporção relativamente estável nos últimos anos. Cultura e biologia são permanentemente invocadas como motivos que seguram uma equiparação total e continuarão a ser discutidos ainda por muito tempo — no caso de Sarah Gilbert, seu marido precisou parar de trabalhar quando ela teve trigêmeos. Uma certeza: o mundo da ciência ficou melhor com a contribuição dessas três mulheres.
Publicado em VEJA de 7 de abril de 2021, edição nº 2732