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Trote, golpe ou conspiração: o curioso caso de QAnon e Trump

Com o fim das fronteiras entre verdades e mentiras, um misterioso personagem chamado Q inflama as mais loucas teorias sobre Trump. Ou tem loucos maiores?

Por Vilma Gryzinski 27 ago 2018, 09h39

Ninguém escreveu melhor que Calderón de la Barca sobre a impermanência da realidade.

“Que é a vida: uma ilusão/ uma sombra, uma ficção/ e o maior bem é pequeno:/ que toda a vida é sonho/ e os sonhos, sonhos são.”

O personagem que diz isso Segismundo, foi criado numa cela, trancafiado pelo pai, um rei da Polônia, para não realizar uma profecia maligna, como um Édipo eslavo. Com o uso de narcóticos, ele é trazido para a corte e, da mesma forma, levado de volta à mesma “enclausurada prisão” à qual temia voltar se acordasse do torpor.

O espanhol do Século de Ouro nos leva diretamente aos braços de Q, o perturbador, provocante, alucinante personagem que nasceu no labirinto dos espelhos da internet e, agora, passou para o theatrum mundi, o teatro do mundo, também chamado de IRL, ou vida real.

Q tirou seu pseudônimo da letra que equivale ao nível máximo de segurança para os funcionários do Departamento de Energia.

Detalhe importante: esse ministério não cuida só da eletricidade ou do carvão, mas da pesquisa, produção e armazenamento de todo o arsenal nuclear americano.

É claro que o nível Q fica muito mais interessante com esta informação. Como Q propõe uma espécie de A Teoria de Tudo da Conspiração, passar a imagem de alguém com acesso aos maiores segredos nucleares dos Estados Unidos fortalece um bocado sua plataforma.

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Ele (ou ela, ou eles) diz que está envolvido diretamente no que acontece no governo Trump.

SIGAM AS MIGALHAS

Por isso, pode garantir, entre outras coisas que tudo, absolutamente tudo, que o presidente americano faz não só obedece a um plano brilhante para salvar o país dos traidores, vendilhões da pátria e envolvidos com redes sórdidas de pedofilia nos mais altos escalões, como é produto de um acordo secreto feito com as Forças Armadas e as agências de segurança.

Fora, evidentemente, os elementos das agências que participam do lado negro da força – uma parte da teoria conspiratória que encontra um impressionante espelho no mundo real, considerando-se a quantidade de integrantes da cúpula do FBI afastados ou demitidos por tramar contra a eleição, a posse e a permanência de Trump na Casa Branca.

Em seu post mais famoso, intitulado “Migalhas de Pão” (obviamente com o propósito de conduzir às mais arrebatadas conclusões), QAnon, ou Q Anônimo, faz uma série de perguntas.

Entre elas: “Pediram a TRUMP que concorresse a presidente dos Estados Unidos? Por quê? Quem?”.

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“Sobre o que o POTUS tem controle? Sobrou alguma organização que não seja corrupta? por que os militares têm um papel tão vital? Por que o POTUS se cercou de generais altamente respeitados?”

Como em qualquer teoria conspiratória que se preze, o bilionário George Soros, patrono de grande quantidade de ONGs ligadas a causas de esquerda, evidentemente entra na história.

“O que acontecerá se operações financiadas por Soros partirem para a violência e cometerem atos de terrorismo? O que acontecerá se prefeitos/chefes de polícia não aplicarem a força da lei?”

“Que autoridade específica o POTUS tem sobre os Fuzileiros Navais? Por que isso é importante?”.

As perguntas continuam, todas induzindo a respostas que arrancam os cabelos de jornalistas da vanguarda do antitrumpismo.

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Exasperados quando cidadãos comuns começaram a levar cartazes a comícios de Trump dizendo “Nós somos Q”, o valentes profissionais agora estão em estado de paroxismo.

Na quinta-feira passada, um dos mais conhecidos proponentes das teorias de QAnom, o radialista Michael Lionel Lebron, postou uma foto dele e da mulher, Lynn Shaw, no lugar mais sonhado por qualquer conspiracionista, fora um objeto voador não identificado.

Explodindo de felicidade, Lebron, que hoje virou figura do YouTube, aparece ao lado de Donald Trump na mesa feita com madeira do Resolute, um navio de pesquisa do século XIX, encalhado no Ártico, recuperado por um baleeiro americano e presenteado pela rainha Vitória.

A mesa é a peça principal do Salão, ou Gabinete, Oval, no coração da Casa Branca. O que Lebron e senhora estavam fazendo lá? Silêncio total. O presidente, obviamente, tem o direito de receber quem quiser, de preferência se não for um criminoso condenado.

E todo americano tem o direito de propagar as mais alucinadas teorias conspiratórias. Se não fosse assim, o que teria acontecido com Oliver Stone (Lyndon Johnson participou da trama para matar John Kennedy) e Michael Moore (Bush pai e filho foram peões da Arábia Saudita nos desdobramentos do Onze de Setembro)?

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FORÇAS MALIGNAS

Como os dogmas religiosos, quanto mais absurdas forem as teorias conspiratórias, maior a possibilidade de que emplaquem.

Da saudável desconfiança das versões oficiais (traduzida na história recente do Brasil em duas palavras: Celso Daniel) à confiança ilimitada em teorias segundo as quais “eles” – as entidades sinistras abrangendo as mais altas esferas do poder – dominam tudo, inclusive nossas mentes, muitas vezes a distância é indistinguível.

Acreditar em explicações mágicas, num mundo dominado por forças malignas e em todo tipo de boato envolvendo personalidades conhecidas, inclusive ou principalmente quando são estapafúrdios, são características do comportamento humano – daí a futilidade dos esforços bem intencionados para “expor” as fake news.

Atormentados pelos monstros que criaram sem querer, os donos das grandes plataformas da internet agora querem obrigar todo mundo a pensar da maneira que consideram correta, desistir de reproduzir boatos (mesmo ou acima de tudo quando sabe quem que são mentirosos) e “expor” as fake news.

Cortaram, por exemplo, um dos mais conhecidos conspiracionistas de extrema-direita, Alex Jones. Como a censura sempre está um passo atrás dos censurados, o conspiracionismo do momento já estava em outra: nos posts de QAnom.

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Tão alucinados que já foram considerados uma espécie de trote dos anticonspiracionistas (de esquerda).

A tese mais doida: Robert Mueller, o promotor especial que é a maior esperança de impeachment dos antitrumpistas, principalmente se conseguir convencer que houve benefício eleitoral no pagamento pelo silêncio às gatas no armário de Trump, na verdade está investigando Hillary Clinton e outros elementos do “deep state” que conspiram contra o presidente.

Detalhe anedótico: o Departamento de Energia, ao qual Q alega ter acesso profundo, funciona num gigantesco prédio que leva o nome de James Forrestal, o primeiro secretário de Defesa dos Estados Unidos, depois que os ministérios militares foram unificados.

Com grave esgotamento mental, ele foi internado depois de renunciar ao cargo, por conflito com Harry Truman. Em 22 de maio de 1949, cometeu suicídio jogando-se do décimo-sexto andar do hospital da Marinha, só com a calça do pijama.

Havia sido submetido a tratamentos psiquiátricos drásticos, como o coma induzido por choque insulínico, uma das muitas maluquices da história do tratamento de doenças mentais.

O SUICÍDIO DE ÁJAX

O suicídio de Forrestal deu origem a teorias conspiratórias que persistem até hoje. Os suspeitos vão de agentes soviéticos, para vingar o anticomunismo férreo de Forrestal, a espiões sionistas – o secretário havia sido contra o apoio americano à criação do Estado de Israel, prevendo muitos conflitos com os aliados árabes.

Forrestal, em cuja homenagem foi batizado o primeiro porta-aviões americano, deixou como bilhete de suicida um trecho de Ájax, a tragédia de Sófocles sobre o herói grego que sofre um desequilíbrio mental, volta-se contra os companheiros e, enganado por Atena, mata um rebanho de bois, pensando ser soldados. Humilhado, ele se suicida.

Repete-se, assim, a história de verdade, mentiras, sonhos, fake news. Agora com o infindável universo da internet para ser usado de infindáveis maneiras.

E algum momento, a identidade de Q será revelada. Será um grupo de trolls, profissionais da manipulação, um único e maquiavélico inventor de conspirações, quem sabe o próprio Trump, como já inevitavelmente especulam?

Voltamos aqui para Calderón de la Barca e seu Segismundo: “É uma doce mentira/ tudo que nesta vida passa:/ porque quando despertei/ tudo é vento, tudo é nada.”

Um último detalhe, para mostrar como o impulso da manipulação contamina até mesmo o que se consideram os juízes finais da verdade. Vários jornalistas estão chamando Q e seus adeptos de “seita da pedofilia”, insinuando de maneira nada sutil que são praticantes de crimes sexuais contra crianças.

Quem é mais maluco nessa história toda?

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