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A crise como normalidade

A alma parlamentarista do Congresso avançou sobre o Executivo

Por Murillo de Aragão 9 jun 2024, 08h00

Na história da República brasileira tem-se observado ao longo dos anos uma crescente hegemonia do Executivo sobre os demais poderes. Nem mesmo a redemocratização, ainda que tenha derrotado a ditadura, conseguiu abalar a predominância do superpresidencialismo no país. No entanto, nas últimas décadas, verificou-se uma transformação de grande impacto na relação entre as instituições.

Durante os trabalhos da Assembleia Constituinte, houve um sério flerte com o parlamentarismo. Porém, uma operação-relâmpago apoiada pelo então presidente José Sarney — apelidada por André Singer de “Noite de São Bartolomeu”, em analogia ao massacre dos huguenotes na França do século XVI — reverteu a tendência que parecia levar à aprovação desse sistema de governo.

Ironicamente, décadas depois, Sarney se arrependeria da derrota do parlamentarismo, resultante de uma articulação que ele mesmo patrocinara a partir da Presidência da República. Embora o sistema parlamentar tenha sido derrotado duas vezes no país — na Constituinte e no plebiscito de 1993 —, a alma parlamentarista do Congresso Nacional resistiu e avançou sobre os poderes do Executivo. Especialmente ao retirar do presidente a capacidade de criar maiorias parlamentares por meio do controle do Orçamento.

“A fragmentação de poder no Brasil não é algo necessariamente ruim, embora gere ruídos e confusões”

A Operação Lava-Jato também contribuiu para enfraquecer o presidencialismo. Entre as suas consequências, destaca-se o financiamento público de campanhas eleitorais, que, antes, eram fortemente influenciadas pelo governo via alianças com empresas privadas e doações, tanto legalmente quanto de forma ilícita.

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O abuso da utilização de medidas provisórias também levou o Parlamento a limitá-las, bem como a fazer com que deixassem de trancar a pauta de votação. Por outro lado, a não votação dos vetos presidenciais passou a travar a pauta na Casa Legislativa. Ambas as situações retiraram do Executivo o poder de agendamento de temas no Congresso.

Além de tudo, o crescente poder do Judiciário, por meio da judicialização da política, praticamente estabeleceu um sistema “tricameral”, onde todas as políticas públicas relevantes são decididas, em última instância, pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Assim, o Judiciário se estabeleceu como um poder político ao longo deste século, tomando decisões de amplo alcance, como nos julgamentos do mensalão e da Lava-Jato, entre muitos outros — a exemplo do fim do financiamento empresarial de campanhas eleitorais.

A fragmentação do poder no Brasil não é algo necessariamente ruim, embora gere ruídos e confusões. A repartição do poder é melhor do que sua concentração nas mãos de um superpresidente. No entanto, os limites e as responsabilidades de cada poder hoje não estão claros. A crescente autonomia do Legislativo sobre o Orçamento deve ser acompanhada de responsabilidade e transparência. O Judiciário também deve estar sujeito a um escrutínio mais evidente, devendo, inclusive, exercer a autocontenção para que não perca, ainda mais, o respeito e a consideração de parte expressiva da sociedade.

Publicado em VEJA de 7 de junho de 2024, edição nº 2896

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