A disputa entre Executivo e Legislativo por verbas discricionárias envolve aspectos que têm passado despercebidos. Imaginem se o Congresso fosse majoritariamente de centro-esquerda e esquerda. Haveria, por acaso, uma disputa do Executivo contra as emendas dos parlamentares no STF? Dificilmente. Isso porque o governo, junto com seus aliados, orientaria o uso das emendas em conformidade com suas políticas, sem necessidade de conflitos.
Entretanto, como o governo é minoritário no Congresso e depende de acordos pontuais para avançar sua agenda, a perda dessas verbas se torna um grande problema. Além de reduzir sua capacidade de investimento (considerando que 90% do Orçamento é vinculado a destinações específicas), o governo perde recursos essenciais para implementar políticas públicas e fortalecer seus aliados.
Assim, independentemente do argumento de que a questão afeta só 10% dos recursos não vinculados, a disputa é por poder. Com os parlamentares dispondo de verbas para as bases eleitorais, a cooptação de apoio se torna significativamente mais cara. Esses congressistas sentem-se autônomos e livres para votar conforme seus interesses.
“O Congresso caminha para se transformar em uma espécie de ‘capitanias herediárias’ ”
Esse cenário traz outro efeito negativo para o governo. O Congresso opera sob uma lógica semelhante ao “axioma” de Dominguinhos: “Olha, isso aqui tá muito bom… Isso aqui tá bom demais… Olha, quem tá fora quer entrar… Mas quem tá dentro não sai”. Um parlamentar que souber distribuir bem suas verbas dificilmente perderá a reeleição. A renovação do Congresso em 2026 tende a ser mais baixa, pois os atuais membros dispõem de recursos para assegurar apoios em suas bases, sem depender do Executivo. Há exceções. Estados como a Bahia, que têm grande dependência do governo federal, podem ver o PT sair-se bem. O Congresso caminha para se transformar em uma espécie de “capitanias hereditárias”, onde os atuais ocupantes têm o poder de garantir suas reeleições ou determinar quem os substituirá. Mesmo que o presidente Lula venha a se reeleger.
Ironicamente, mesmo aqueles que são parte do universo lulista não querem perder suas verbas e lutam para mantê-las (“farinha pouca, meu pirão primeiro”). A guerra por procuração (by proxy), na qual o Executivo recorre ao Judiciário para neutralizar o Legislativo na questão das verbas, tende a agravar ainda mais as relações entre os Poderes. Primeiro, porque o STF já reconheceu as “emendas Pix” e outras. Não há como recuar sobre a sua validade sem agravar a crise política. Segundo, porque a ação que gerou a atual confusão buscava acabar com as emendas — uma proposta, no mínimo, delirante, que só serviu para acirrar os ânimos dos parlamentares. Terceiro, porque o Congresso tem instrumentos poderosos de retaliação. O diálogo entre os poderes, promovido pelo presidente do STF, Luís Roberto Barroso, foi uma iniciativa louvável e saudada por Lula, mas os termos do acordo não estão totalmente sacramentados, e resistências importantes no Congresso precisam ser superadas.
Finalmente, é importante lembrar que o Brasil vive sob um regime presidencialista, com um Congresso que tem uma alma parlamentarista, e uma Constituição que se aproxima do semipresidencialismo, dada a soma de poderes conferidos ao Legislativo, ao Judiciário, ao Ministério Público e aos órgãos de controle. Enfim, é o que temos para hoje.
Publicado em VEJA de 30 de agosto de 2024, edição nº 2908