
As turbulências políticas atuais apresentam características simultaneamente intrigantes e preocupantes para qualquer observador atento. O fenômeno da polarização política é alimentado, sobretudo, pela imprevisibilidade das ações. A lógica subjacente é bastante direta: quem age de forma imprevisível acaba obrigando os demais atores políticos a cederem para evitar consequências ainda mais danosas. Essa estratégia deriva da chamada “teoria do homem louco”, conceito surgido no contexto da Guerra Fria como tática de dissuasão nuclear. Segundo essa abordagem, líderes considerados irracionais ou imprevisíveis induziriam os adversários ao receio extremo de um confronto direto, estimulando-os a optar por concessões como alternativa mais segura.
A migração dessa lógica para a política doméstica ocorreu gradualmente, mas com impacto devastador. Enquanto no contexto internacional a “teoria do homem louco” operava entre Estados soberanos com capacidade militar equivalente, na política interna ela se traduz em ameaças às próprias instituições democráticas. O “adversário” deixa de ser um país rival e passa a ser o sistema político estabelecido, a imprensa, o Judiciário, a oposição. Donald Trump explorou intensamente essa estratégia, especialmente nas negociações comerciais. Sua administração denuncia contratos sem aviso prévio, estabelece tarifas extravagantes e ameaça com sanções, tudo com o objetivo explícito de gerar um ambiente de incerteza e tensão que possa se desdobrar em negociações.
“Políticos que tentam introduzir alguma pacificação são rotulados de fracos ou traidores”
No Brasil, Lula também adotou elementos dessa tática, embora com características próprias. Sua retórica antielite se manifesta em declarações públicas que desestabilizam mercados, provocam confrontos institucionais e mantêm aliados e adversários em estado de alerta. A imprevisibilidade, neste caso, surge tanto da retórica quanto de decisões de governo que alternam entre moderação e radicalismo. Embora eficaz eleitoralmente, o custo dessa estratégia pode trazer consequências negativas a médio prazo.
Uma vez libertado, é difícil recolocar na garrafa o “gênio da imprevisibilidade”. Políticos que tentam introduzir alguma pacificação são rotulados de fracos ou traidores. Isso gera uma nova dinâmica no poder político, baseada em confrontos irracionais e extremados. A retórica agressiva pode ser autossustentável, sendo adotada não apenas por políticos, mas também pela mídia e por ativistas. O debate público pode exigir um grau mínimo de beligerância explícita para ser considerado relevante. Essas mudanças têm consequências profundas e abrangentes. A confiança nas instituições públicas caiu drasticamente, levando cidadãos, empresas e parceiros internacionais a se prepararem continuamente para cenários de instabilidade e mudanças repentinas. Essa incerteza constante altera profundamente o modo como decisões estratégicas e investimentos são planejados.
Abordagens equilibradas e moderadas tornaram-se, assim, um passivo eleitoral, invertendo completamente valores tradicionais de governança democrática. O mais perturbador desse cenário é que a imprevisibilidade e a confrontação não são mais casos isolados, mas sim o novo status quo, alterando radicalmente as normas não escritas da democracia e trazendo consequências ainda desconhecidas a longo prazo. Por fim, devemos questionar se este não é um fenômeno estrutural mais profundo, ligado a mudanças na própria arquitetura da política contemporânea. Assim, é fundamental reconhecer que estamos diante não apenas de crises ou rupturas isoladas, mas de uma nova forma de operar politicamente — até que alguém encontre uma maneira de restaurar a previsibilidade e o pragmatismo perdidos.
Publicado em VEJA de 11 de julho de 2025, edição nº 2952