Editorial de O Estado de S. Paulo (7/4/2021)
O mundo real impõe limitações, deveres e responsabilidades. E, como se vê diariamente, o presidente Jair Bolsonaro deseja distância de tudo isso. Infelizmente, Jair Bolsonaro não está sozinho em seu alheamento negacionista.
Ao longo de penosos meses, o País viu o descalabro do intendente Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde. Agora, começa a se dar conta do que é ter um fiel seguidor de Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF). No dia 2 de abril, no pior momento da pandemia de covid-19 no País, o ministro Kassio Nunes Marques autorizou, por decisão liminar, celebrações religiosas presenciais em todo o País.
A decisão liminar é esdrúxula. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 701 foi proposta pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), que não tem competência para ingressar com esse tipo de ação. A ADPF 701 devia ser rejeitada de plano, mas o ministro Kassio Nunes Marques valeu-se dela para afagar o Palácio do Planalto.
A ação da Anajure insurgiu-se contra o Decreto 31 (de 20 de março de 2020), do município de João Monlevade (MG), que suspendeu o funcionamento de atividades com potencial de aglomeração de pessoas, para conter a difusão do novo coronavírus. Vale lembrar que, em 15 de abril de 2020, menos de um mês depois da edição do decreto municipal, o STF reconheceu a competência de Estados e municípios para definir as regras de isolamento.
Decisão do STF
Ou seja, a rigor, a ADPF 701 não questionava a prefeitura de João Monlevade, mas a decisão do STF. Era mais uma razão para negar o pedido da Anajure, mas o ministro Kassio Nunes Marques preferiu invadir a competência constitucional de Estados e municípios, arbitrando que cultos religiosos podem ser realizados com 25% da capacidade de lotação dos templos.
Não bastassem a irregularidade da ADPF 701 e o desrespeito às atribuições dos entes federativos, o ministro Kassio Nunes Marques mostrou, na decisão liminar, desconhecimento de conceitos básicos do Estado Democrático de Direito, além de ignorar a realidade.
É óbvio que o poder público, para proteger a vida da população, pode impor restrições às atividades sociais, aí incluídas as religiosas. Haja estreiteza intelectual para entender – tal como expresso na decisão liminar – que a proibição de atividades com potencial de gerar aglomeração, em meio à pandemia de covid-19, desrespeitaria a liberdade religiosa e o caráter laico do Estado.
Tem-se, assim, mais um exemplo de como o bolsonarismo não tem limites. Em sua desumana pretensão de negar a gravidade da pandemia, recorre a conceitos tão caros à dignidade humana, como a liberdade religiosa e a laicidade do Estado, para assegurar a realização de atividades que ampliam a difusão do novo coronavírus. O presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores desconhecem a situação dos hospitais e as atuais taxas de mortalidade da covid-19?
É estranho que entidades religiosas, alinhando-se ao bolsonarismo, sejam tão indiferentes ao interesse público. O estranhamento desaparece, no entanto, depois do dado divulgado pelo Estado. Igrejas têm R$ 1,9 bilhão em débitos inscritos na Dívida Ativa da União. Há casos, por exemplo, de não pagamento de contribuição previdenciária e do Imposto de Renda já descontados do salário dos empregados.
No dia 5 de abril, mostrando que o Poder Judiciário ainda não é sala de despacho do presidente da República, o ministro Gilmar Mendes negou pedidos do PSD e do Conselho Nacional de Pastores do Brasil e manteve o decreto do governo de São Paulo que vetou atividades religiosas coletivas presenciais durante as fases mais restritivas do plano de combate à covid-19.
Em sua decisão, Gilmar Mendes destacou que “apenas uma postura negacionista” permitiria concluir que a “excepcionalidade” das restrições às celebrações religiosas neste momento de nova escalada da pandemia violaria direitos fundamentais.
Uma vez que a decisão de Gilmar Mendes refere-se apenas ao Estado de São Paulo, cabe agora ao plenário do STF restaurar a defesa da vida e da Constituição em todo o território nacional. Todos os brasileiros merecem o mesmo respeito.