Chega o 7 de setembro e você pensa pela enésima vez:
— Que diabo de país é esse que a gente vive?
Tudo que se vê na imprensa é a patifaria dos governantes, as malas estufadas de dinheiro, as gravações feitas às claras ou às escuras que recobrem a vida pública de infâmia e vexame surreais.
Não se pode condenar quem está sentindo vergonha de ser brasileiro.
Pra não dizer que tudo sempre foi essa droga — e talvez trazer algum alento ao Dia da Independência —, resgato a história de um casal de funcionários públicos que também burlou a lei no passado, não para enriquecer com o dinheiro do contribuinte, mas para fazer a coisa certa em termos humanitários.
Ele era o famigerado Guimarães Rosa, autor do Grande Sertão: Veredas, que ocupava o cargo de cônsul adjunto no consulado brasileiro de Hamburgo, Alemanha, às vésperas da Segunda Guerra Mundial.
Ela — a real protagonista da história — era Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa, esposa do escritor, que trabalhava no mesmo consulado como chefe do setor responsável pela emissão e carimbo dos passaportes.
Como se sabe, a coisa não estava fácil para os judeus que viviam na Alemanha de Hitler. Quem podia arrumava as malas para fugir, mas isso era quase impossível por causa dos acordos secretos que o Reich mantinha com a maioria dos países ocidentais, inclusive o Brasil (outro golpe contra o mito da democracia racial), que restringia ao máximo a entrada de judeus no país.
Pois Aracy, sorridente no seu posto, ignorou as ordens e continuou preparando os vistos dos judeus. Misturava tudo entre a papelada do chefe e assim conseguia as assinaturas necessárias à liberação de gente que provavelmente terminaria em campos de concentração.
Hoje pode parecer bobagem, mas era uma temeridade o que ela estava fazendo. Não se trata apenas de pôr o emprego em risco, mas a própria vida — e a segurança do filho pequeno —, já que atuava contra um regime que endurecia a cada dia.
Em janeiro de 1939, quando o cônsul tirou férias e Guimarães Rosa assumiu como titular, dezenas ou mesmo centenas de vistos foram emitidos para judeus alemães que puderam emigrar para o Brasil.
A história é contada em detalhes no livro Justa: Aracy de Carvalho e o resgate dos judeus, da pesquisadora Mônica Raisa Schpun, e no documentário Esse viver ninguém me tira, de Caco Ciocler, facilmente encontrável na internet. Em diversas cenas do documentário é possível conhecer alguns dos descendentes das pessoas que Aracy salvou.
Era a mulher certa no lugar certo, mas seria fácil dizer que o problema não era dela e fechar os olhos para quem estivesse em necessidade. Aracy e o marido agiram quietinhos, à mineira, sem fazer alarde da boa ação — não eram loucos! — e sem nunca reivindicar os louros do heroísmo.
Anos mais tarde, Guimarães Rosa escreveria o Grande Sertão. Fez a seguinte dedicatória: “a Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”. Na última página, depois da derradeira palavra, “Travessia”, imprimiu um sinalzinho que até hoje intriga os leitores. Pode ser a lemniscata, símbolo do infinito, mas também pode ser o Anel de Moebius (um dos nomes da esposa), outra forma de homenagear a primeira leitora de todos os seus textos.
Guimarães Rosa dizia que as pessoas não morrem, ficam encantadas.
Aracy encantou-se apenas em 2011, em São Paulo, aos 102 anos de idade.