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Série da Netflix “O Mecanismo” propõe um novo mito para o Brasil

De acordo com a série, o novo herói brasileiro é o cidadão comum que tenta matar o câncer da corrupção no nascedouro

Por Maicon Tenfen Atualizado em 26 mar 2018, 18h53 - Publicado em 26 mar 2018, 18h40
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  • — Tudo começou em 1808 com a vinda de D. João VI para o Brasil — diz o corrupto João Pedro Rangel em sua delação premiada. — Naquela época quem mandava eram os traficantes de escravos. Eles é que eram os donos do dinheiro. E tinha um deles, o mais rico, Elias Antônio Lopes, se não me engano, que cedeu a Quinta da Boa Vista para D. João morar com a família. Em troca Lopes recebeu a Ordem Militar de Cristo e foi nomeado escrivão e tabelião de Parati, virou provedor de seguros da corte e também arrecadava impostos em várias localidades. Aí que começou essa longa tradição que vem dar aqui.

    A cena pertence ao sexto episódio de O Mecanismo (Netflix), série de José Padilha que remonta as etapas iniciais da Operação Lava Jato (a primeira temporada vai do encarceramento do doleiro Alberto Youssef às vésperas da prisão do empresário Marcelo Odebrecht). João Paulo Rangel é um personagem fictício inspirado em Paulo Roberto Costa, ex-diretor de abastecimento da Petrobrás que fez a delação na vida real (certamente sem exibir conhecimentos históricos). Toda a série foi montada como um roman à clef, ou seja, pessoas e instituições que vemos no noticiário aparecem com os nomes trocados.

    Lula é João Higino. Dilma é Janete Ruscov. Aécio Neves é Lúcio Lemes. Michel Temer é Samuel Thames. Marcelo Odebrecht é Ricardo Brecht. Youssef e a amante Nelma Kodama são Ibrahim e Wilma Kitano. “Tudo bandido”, segundo a série. Mas aí vêm os heróis quase sempre vaidosos ou obcecados: Sérgio Moro aparece como Paulo Rigo, a delegada Erika Marena como Verena Cardoni e o policial aposentado Gerson Machado como Marco Ruffo (Selton Mello, que faz a maioria das narrações sussurrantes). O primeiro episódio é forçado, mas quem chegar ao terceiro vai maratonar. Além de verídica, a história é boa e trabalha na construção de um novo mito nacional.

    Novo mito nacional?

    Que história é essa?

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    Vamos por partes.

    Inicialmente, devemos compreender que o mito é um conjunto de histórias que contamos a nós mesmos para saber quem somos e, a parir daí, como vamos agir diante das adversidades. O mito pode ter valor individual (histórias amorosas, por exemplo), ou coletivo, quando uma narrativa se torna poderosa o suficiente para orientar a totalidade da população. O mito só adquire essa força totalizante se for representado pela Arte e/ou pelo Marketing Governamental. No caso da Arte, pelo menos teoricamente, o mito frutifica com autenticidade. É por isso que os governos, na medida do possível, procuram controlar as manifestações culturais: nelas, afinal de contas, está o imaginário do país.

    Nesse sentido, a aulinha de História de João Paulo Rangel — personagem que deve ter lido os best-sellers de Laurentino Gomes — chama atenção para as raízes profundas do problema. Ao longo dos séculos, enquanto o “mecanismo” da corrupção crescia e se aperfeiçoava a ponto de se tornar um elemento-chave da máquina pública, dois grandes mitos foram erigidos em dobradinhas do gênero Arte + Marketing Governamental para responder a pergunta “quem somos nós?”. O primeiro desses mitos data do Segundo Reinado (1840-1889) e teve a ver com a fundamentação da nossa independência. O segundo nasceu na Era Vargas (1930-1945) e foi resultado de movimentações políticas que antecederam a Segunda Guerra Mundial.

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    No caso do Segundo Reinado, a criação de um herói das matas servia para preencher as lacunas simbólicas de um Império que nada mais era que um espaço geográfico verdejante. Os portugueses sabiam que eram mestres dos mares por causa d’Os Lusíadas, mas qual seria a identidade dos brasileiros? D. Pedro II patrocinou inúmeros artistas que idealizavam a figura do Bom Selvagem de Rousseau, mas foi José de Alencar quem soprou o barro da nobreza indígena n’O Guarani, até hoje obrigatório em sala de aula. Depois que Carlos Gomes adaptou a história de Ceci e Peri para uma ópera aplaudida de pé no Velho Mundo, o Brasil conseguiu difundir uma imagem, ou uma caricatura, da qual se tornaria prisioneiro.

    Do Bom Selvagem passamos ao Bom Malandro. No princípio da década de 1940, temendo que o Brasil se alinhasse com os nazistas, os Estados Unidos se empenharam numa política de boa vizinhança que tinha a Sétima Arte como alicerce. Todo mundo fala do filme fracassado do Orson Welles, mas a verdade é que a visita de Walt Disney gerou duas animações de sucesso que levaram o Zé Carioca para o mundo. Eis o brasileiro típico, o homem cordial, o malandro feliz que vive a vida sem se preocupar com o amanhã. O estereótipo coincidia com a política cultural do Estado Novo, que demoliu a Praça Onze e reorganizou o desfile das escolas de samba numa nova avenida que, claro, recebeu o nome de Getúlio Vargas.

    Desnecessário dizer que os dois mitos caducaram. O Bom Selvagem pode caçar onças à unha, mas é incapaz de compreender a selva de corrupção em que se perdeu. Já o Bom Malandro, convenhamos, não pode ser tão bom assim, e o mais provável é que vá exercer a sua esperteza sobre o dinheiro público. O resultado é que chegamos ao século XXI sem qualquer suporte mítico que corresponda às exigências do nosso tempo. Por um curto período vivemos o mito do Bom Operário que salvaria a pátria, mas o resultado todo mundo viu. Por outro lado, o que poderíamos chamar de mito do Bom Empreendedor, o capitalismo do bem que modernizaria o Brasil, também desmoronou num abismo de vergonha e desilusão.

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    Esse problema de representação é mais perigoso do que parece. Quando sentimos que o mito está ausente, vamos atrás de qualquer coisa que se assemelhe a uma narrativa de resolução simplista. Vivemos um momento de indignação em que as pessoas desejam passar do discurso à prática, alguns difundindo a lorota fascista do Capitão Nascimento (“bandido bom é bandido morto”) e outros apregoando a sina cangaceira do Zé Pequeno (“injustiça se resolve com AR-15”). É nesse cenário de polarização que surge O Mecanismo. Disponível em 190 países, chegará muitíssimo mais longe que O Guarani e o Zé Carioca. É o retrato mais atual do Brasil. Mesmo que não queira, será responsável pelo novo mito nacional.

    Mas qual é o mito difundido pela série?

    O primeiro off do Selton Mello dá a dica:

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    — No Brasil as pessoas pensam que ser policial é subir favela e trocar tiro com traficante. Isso não é ser policial. Isso é ser policial burro (aqui parece que José Padilha está fazendo um mea culpa sobre o simplismo do Tropa I). O que fode o nosso país não é a violência nas favelas, não é a falta de educação, não é o sistema de saúde falido. O que fode o nosso país é a causa de tudo isso (e aí o personagem compara a corrupção a um câncer cujas metástases destruirão o organismo inteiro).

    De acordo com a série, o novo herói brasileiro é aquele que tenta matar esse câncer no nascedouro, mas não é necessariamente o Bom Juiz, o Bom Defensor Público ou a Boa Delegada Federal. É o cidadão comum que precisa meter a mão na merda, literalmente. Em certa altura, o protagonista chama um funcionário do Estado para resolver o vazamento de esgoto na frente da sua casa. Fica sabendo que o serviço leva três semanas para ficar pronto, mas “se o senhor quiser a gente pode dar um jeito por fora”. Como assim, por fora? Tudo indicava que o personagem do Selton Mello faria justiça com as próprias mãos, e de fato fez: abriu o bueiro sozinho e deu um jeito de remendar o tubo!

    É assim que se combate a corrupção, e é isso que significa ser um brasileiro de verdade em O Mecanismo. A série insiste numa ideia muito óbvia e verdadeira: a corrupção é intrínseca ao país, está em todos os setores da vida cotidiana e não possui coloração partidária. A polarização “nós” e “eles” faz todo sentido na trama, mas nem de longe significa esquerda contra direita ou coxinhas contra petralhas. “Nós” somos o todo da população, brancos e negros, ricos e pobres, homens e mulheres, enquanto eles são os políticos safados que tomaram conta dos poderes municipais, estaduais e federais. Quanto mais brigamos entre “nós”, mais “eles” pintam e bordam com o dinheiro dos impostos.

    Ao contrário dos mitos do Segundo Reinado e da Era Vargas, as ideias contidas em O Mecanismo são independentes de qualquer política cultural de Estado. A Polícia Federal ofereceu apoio ao projeto — desde que pudesse opinar sobre os roteiros — mas José Padilha recusou a proposta (daí o porquê de vermos uma certa “Polícia Federativa” na série). É um indício de que, pela primeira vez, uma tentativa mundialmente abrangente de reconstruir mitos sobre os brasileiros está brotando com as regras próprias da Arte, sem os favores e as interferências do Marketing Governamental. Vamos ver como a série repercute no exterior. Mais importante, vamos ver como repercute entre “nós”.

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