Anda-se depressa em São Paulo.
Duvida? Então tente acompanhar as passadas de um paulistano durante o horário comercial. São inquietos, afobados, caminham como se cada dia fosse o último e cada noite fosse a primeira. Não costumam hesitar ou procrastinar, isso é um perigo para eles, temem que a cidade desapareça depois de um bocejo mais prolongado.
É que São Paulo muda a cada momento, e muda rápido, voando, basta lembrar o que ocorreu nos últimos 150 anos. Era um vilarejo de 20 mil habitantes que acolheu a primeira faculdade de Direito do Brasil. De repente, numa bela manhã de sol, os moradores abriram as janelas e se depararam com um parque industrial em expansão.
Mais um piscar de olhos e a população havia se multiplicado por mil. Depois por dez mil, por cem, por um milhão. É por isso que não dá para andar na lenta em São Paulo. É só não cuidar que a cidade liga as turbinas e te obriga a comer poeira.
O Nelson costumava dizer que a amizade de um paulista é a pior forma de solidão. Não que sejam antipáticos. Apenas não têm tempo e paciência para uma boa conversa depois do almoço. Você termina a refeição e vai até o banheiro escovar os dentes. Quando volta — surpresa! — o restaurante está vazio. Retornaram todos ao trabalho, e todos correndo, estressadinhos, porque morreriam de tédio se não inventassem um compromisso a cada palavra e uma urgência a cada telefonema.
Têm muito o que fazer, muito a olhar, demais a descobrir. O novo, o velho e a variedade estão ali, pertinho, a um quilômetro de distância ou a três horas de engarrafamento. Dia a dia esquadrinham a maquete em tamanho real de tudo que o país produziu de belo ou equivocado.
Só em São Paulo se pode desfrutar da sofisticação de uma Japan House e da breguice de um Terraço Itália, da decadência da Liberdade (com direito a trocadilho) e do esplendor comezinho da Mooca, da coxinhice meio veada dos Jardins e da onipresença rancorosa de companheiros que sonham com uma desforra dialética.
— Essa cidade deveria ter o teu nome — diz Macário a Satan na peça de Álvares de Azevedo, o poeta que nasceu em São Paulo, mas que era carioca, mas que voltou para estudar na futura metrópole.
— Tem o nome de um santo — responde Satan —, o que dá no mesmo.
O que São Paulo fez para ser São Paulo? Olinda e Recife envelheceram, Salvador se enrustiu no Olodum, Belo Horizonte continua dos coronéis, Curitiba brincou de planejamento, Floripa sonha com o mundo e Porto Alegre ainda pensa em separatismo. São Paulo cresceu, só isso. Tornou-se a bolsa de dinheiro da nação.
Culturalmente, ultrapassou o Rio em 1922. Só ali poderia acontecer uma Semana de Arte Moderna. Só ali se criaria um Oswald de Andrade, que escreveria O Rei da Vela, a primeira peça brasileira (que ironia) a criticar as sacanagens do capital estrangeiro. Onde mais apareceria um Zé Celso louco o bastante para levar a bichice de Mr. Jones ao palco?
Eis que Silvio Santos e o SBT se instalam em São Paulo. São vizinhos do Teatro Oficina. Ficam juntos, quase no mesmo terreno, separados por uma mureta imaginária que divide o jardim de Dionísio e o quintal de Midas, a antítese e a metonímia dessa cidade que é sinônimo de grana e entretenimento, disciplina e desbunde, cartão de ponto e vale cultura, térmicas de academia e cachimbinhos de crack.
Deram em brigar, os vizinhos. Desistiram de fazer média para as câmeras e agora alimentam caricaturas na imprensa. De um lado os maconheiros da Lei Rouanet que querem transformar o mundo em escarcéu; de outro o capitalista fominha obcecado por mais investimentos imobiliários, além daquela impagável mania de explorar os sonhos da classe C, uma gente que descobriu o espetáculo dos shoppings sem nunca entender a religião que é o teatro.
Por que esses velhos não se entendem? Já não estão os dois com os pés na cova? Não podem chegar a um acordo razoável? É o que devem a São Paulo, e é o que São Paulo deve ao resto do país. Queremos o cinquentenário do Rei da Vela, mas não abrimos mão do Show de Calouros. São as duas faces de São Paulo, e faces complementares, uma não pode funcionar sem a outra.
Esqueçam a morosidade da Justiça, ela não tem nada a ver com os passos apressados da cidade. Para melhor ou para pior, tudo muda por aí, basta um bocejo mais prolongado.