Alzheimer e as finanças das famílias: o impacto silencioso
A doença ainda é incurável, mas seus efeitos nos campos do afeto, do bem-estar e do dinheiro podem ser reduzidos com atenção e ações prévias

“A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; quem as tem em excesso ou em falta, delira.” Machado de Assis, em O Alienista (1882), obra-prima que discute a tênue linha entre razão e loucura.
Desde o seu lançamento, a coluna tem levado para você, leitor de VEJA e VEJA NEGÓCIOS, fatos e histórias do mundo da economia e das finanças, tentando refletir juntos sobre aspectos relevantes que impactam nosso rico dinheirinho, como bem nos ensinou Alberto Tamer (1932-2013), um gênio do jornalismo econômico com o seu clássico livro “Os caminhos do Dinheiro”, de uma forma mais agradável.
Desta vez, a coluna pede a você que me conceda um espaço para levar para a sociedade um tema árduo e extremamente importante, as doenças mentais e o impacto nas finanças das famílias. Afinal, hoje, são mais de 60 milhões de brasileiros com mais de 60 anos, um número que supera a população da maioria dos países latino-americanos.
A doença de Alzheimer, uma das principais causas de demência no mundo, não afeta apenas a memória e o comportamento, mas também compromete, de forma profunda, a estabilidade financeira das famílias. O artigo Effect of early-stage Alzheimer’s disease on household financial outcomes, publicado no periódico Health Economics (2019), analisa como a doença de Alzheimer (DA), já no seu estágio inicial, afeta as finanças das famílias americanas. Os autores — Carole Roan Gresenz, Jean M. Mitchell, James Marrone e Howard J. Federoff — utilizaram dados do Health and Retirement Study, vinculados a registros do Medicare entre 1992 e 2014, para investigar o impacto da DA, do surgimento dos sintomas até o diagnóstico formal, sobre ativos e patrimônio líquido das famílias. Esse estudo está disponível em https://doi.org/10.1002/hec.3962 .
Os resultados indicam que a DA em estágio inicial aumenta significativamente a probabilidade de grandes perdas nos ativos líquidos dos domicílios, especialmente quando o principal responsável pelas finanças é o afetado. Embora os efeitos sobre o patrimônio líquido sejam mais limitados, os dados apontam que o diagnóstico precoce pode mitigar perdas monetárias importantes e que há um papel potencial para as instituições financeiras no suporte a idosos vulneráveis.
O Brasil, com mais de 1,7 milhão de pessoas vivendo com algum tipo de demência — sendo a doença de Alzheimer a forma mais comum —, enfrenta desafios crescentes. Estima-se que 55 milhões de pessoas em todo o mundo vivam com demência, segundo dados da Organização Mundial de Saúde, número que deve ultrapassar 78 milhões até 2030. Em um país com população envelhecendo rapidamente e poucos mecanismos de proteção, é urgente trazer esse debate à tona.
Perdas nas famílias
A vulnerabilidade financeira pode se agravar à medida que a doença evolui. Contas deixadas de pagar, aplicações comprometidas, empréstimos indevidos, movimentações atípicas: tudo isso muitas vezes ocorre sem que a família perceba. A ausência de um planejamento sucessório, de uma rede de apoio e de instrumentos legais adequados pode colocar em risco todo o patrimônio de uma vida.
O Alzheimer é uma doença progressiva e incurável que afeta principalmente a memória e a capacidade cognitiva. No entanto, seus efeitos ultrapassam os limites da neurologia. Silenciosamente, ela ameaça também a estabilidade financeira das famílias, corroendo não apenas lembranças, mas também o patrimônio de quem, um dia, foi responsável pela renda e pelas decisões de sua casa.
Estudos recentes revelam que o Alzheimer em estágio inicial já produz impactos mensuráveis no bem-estar econômico das famílias, mesmo antes de seus sintomas se tornarem incapacitantes. Pesquisas nos Estados Unidos mostram que a perda de ativos financeiros, a deterioração da capacidade de tomar decisões e o aumento dos custos com cuidados médicos e residenciais formam um ciclo de empobrecimento gradual, mas inevitável, se não houver preparo prévio.
O Alzheimer afeta o córtex pré-frontal, região do cérebro responsável pelo planejamento, tomada de decisão e controle emocional. A consequência direta é a dificuldade crescente para lidar com dinheiro, desde tarefas simples como conferir troco até ações complexas como gerir um portfólio de investimentos ou declarar o imposto de renda.
A deterioração da cognição financeira abre espaço para golpes. Relatórios da Financial Industry Regulatory Authority apontam que pessoas idosas com declínio cognitivo são alvo preferencial de fraudes — telefônicas, digitais ou presenciais. Quando há Alzheimer envolvido, o risco se multiplica: a confiança excessiva, a falta de memória recente e o isolamento social facilitam o trabalho dos fraudadores.
Do diagnóstico em diante, os custos aumentam em várias frentes: Consultas médicas e exames, medicamentos específicos e contínuos, adaptações na casa e equipamentos de segurança, cuidados domiciliares, ausência de renda do cuidador informal, geralmente um filho ou cônjuge.
Nos Estados Unidos, o custo anual médio de um paciente com Alzheimer pode ultrapassar US$ 50 mil, segundo a Alzheimer’s Association. No Brasil, embora os números variem, famílias de classe média relatam gastos de R$ 5 mil a R$ 20 mil por mês.
Quando a doença avança, os filhos — muitas vezes adultos em plena fase de ascensão profissional — enfrentam o dilema de cuidar dos pais e manter a própria vida. A sobrecarga emocional e financeira pode levar ao esgotamento, ao endividamento e até a conflitos familiares, especialmente quando há discordância sobre como usar o patrimônio do idoso.
Por isso, é fundamental que a conversa sobre dinheiro ocorra antes que a doença se manifeste. Testamentos, inventários, diretivas antecipadas de vontade, mandatos duradouros e até auditorias financeiras preventivas devem fazer parte de um planejamento patrimonial responsável.
O papel do Estado: proteção legal e interdição progressiva
No Brasil, o Ministério Público atua em casos de interdição, nomeando curadores para idosos com demência. Mas o sistema jurídico ainda é reativo, baseado em denúncias ou pedidos familiares. Seria possível evoluir para um modelo de interdição parcial ou progressiva, com perícias periódicas e autonomia assistida? Cada vez que uma receita de medicamento controlado fosse apresentada em uma farmácia, não seria oportuno que o Ministério Público fosse compulsoriamente informado, o dado armazenado e, caso ocorresse alguma ação de interdição, o cruzamento dos dados poderia acelerar uma decisão judicial?
Além disso, seria desejável que o Sistema Único de Saúde (SUS) e os planos de saúde ampliassem o acesso a centros de diagnóstico precoce e à reabilitação cognitiva. Também seria bem-vinda a criação de residenciais especializados para pacientes com Alzheimer, com equipe multiprofissional, apoio psicológico para cuidadores e acolhimento humanizado.
O SUS também poderia oferecer treinamento especializado ao Ministério Público e aos magistrados, ajudando-os a entender melhor um universo muito especifico, mas que afeta drasticamente milhares de idosos e de famílias.
A Federação Brasileira de Bancos também poderia, por autorregulação e preservando o sigilo bancário, criar um procedimento de registar movimentações financeiras de clientes idosos, 75 +, que possam eventualmente estar ligadas a fraudes ou desvios indevidos de recurso.
Prevenção: memória, corpo e finanças em movimento
Ainda não há cura para o Alzheimer, mas há consenso sobre formas de prevenção: vida ativa, alimentação saudável, sono regular, controle da pressão arterial e estímulo cognitivo reduzem o risco da doença.
No plano financeiro, isso se traduz em: ter reservas de emergência, contar com profissionais de confiança (advogado, médico, apoio e consenso familiar, e planejamento financeiro), criar mecanismos legais que protejam o patrimônio, mesmo com o avanço da doença.
Educar os familiares sobre o que fazer e o que evitar quando os sinais aparecerem é essencial. Afinal, quando a memória falha, a dignidade deve permanecer.
A doença de Alzheimer, como um rio que transborda, extravasa os limites do corpo e da mente, alcançando o campo dos afetos, do tempo e do dinheiro. Proteger a dignidade de quem vive com a doença exige mais do que tratamentos, exige preparo, diálogo, generosidade e ação.
Famílias precisam aprender que planejar é um ato de amor. E a sociedade precisa reconhecer que, no silêncio das perdas cognitivas, há uma urgência coletiva de proteger, não só quem esquece, mas também quem permanece ao lado, lembrando, cuidando e decidindo.
Retornaremos com o tema em breve.