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O Som e a Fúria

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A angústia de Bebel e outros artistas diante da obra de pais famosos

Filha do genial João Gilberto, a cantora grava pela primeira vez um álbum só com músicas imortalizadas pelo pai, em bela homenagem ao criador da bossa nova

Por Felipe Branco Cruz Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h11 - Publicado em 26 ago 2023, 08h00

Há três anos, ainda em luto, Bebel Gilberto compôs e gravou O que Não Foi Dito, canção em forma de carta póstuma ao pai — o criador da bossa nova, João Gilberto. Naquela época, sua vida estava desmoronando. Em dezembro de 2018, ela havia se mudado de Nova York para o Rio de Janeiro para cuidar da mãe, a cantora Miúcha, mas poucos dias depois a perdeu, aos 81 anos, vitimada por um câncer. Em seguida, Bebel teve de tomar a difícil decisão de interditar o pai, aos 88 — e que morreria meses depois. “A saudade só aumenta, mas agora estou mais aliviada”, disse a cantora a VEJA (leia abaixo). Mais que aprender a lidar com a saudade, Bebel tomou coragem para gravar, pela primeira vez, onze canções do repertório de Gilberto, num álbum intitulado apenas João. “Nunca havia gravado nada do papai com medo da opinião dele. Não vou negar que ele era muito exigente e eu sofreria sabendo que ele poderia me criticar”, afirma.

Bebel Gilberto – Agora

A vida e a carreira de Bebel sempre estiveram ligadas à bossa nova, aprendendo com João Gilberto em casa ou acompanhando-o na infância em turnês internacionais. No entanto, nos anos 1980, ao lado do amigo Cazuza, ela migrou para o pop e compôs hits como Preciso Dizer que Te Amo e Mulher sem Razão. Na virada do século, veio outra guinada na carreira, ao lançar Tanto Tempo, álbum que inaugurou a bossa eletrônica e acumulou 3 milhões de cópias vendidas. Agora, Bebel abraça com brio o tradicionalíssimo gênero do banquinho e violão, ao regravar com arranjos clássicos canções de Gilberto Gil, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Newton Mendonça e Carlos Lyra, como Eu Vim da Bahia, Ela é Carioca, O Pato e Desafinado — todas imortalizadas na voz e na batida de João Gilberto ao violão. Do pai, compositor bissexto, ela gravou Valsa, escrita por Gilberto em sua homenagem, e Undiú, canção sem letra com canto feito apenas de solfejos e no qual o violão é rei — aqui, tocado pelo violonista e guitarrista Guilherme Monteiro.

Bebel Gilberto – Tanto Tempo

Ao confrontar o legado do pai, Bebel se junta a outros filhos de famosos que sofreram injustas comparações com seus pais geniais, mas hoje fizeram as pazes com o passado. O caso mais emblemático é o de Maria Rita, que no início da carreira evitava interpretar as músicas de Elis Regina, e só na maturidade passou a cantar e homenagear a mãe. No caso de Bebel, embora a opinião paterna a fizesse paralisar, nunca houve problema em relação a Miúcha. “Minha voz está cada vez mais parecida com a da mamãe, inclusive meu jeito de cantar”, diz.

Essa tal de bossa nova

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Para Bebel, hoje aos 57, o álbum não é só um presente para João Gilberto, mas um modo de manter sua obra em evidência, já que o espólio do artista está embargado na Justiça por desavenças familiares. “Não adianta discutir quem vai ficar com o quê. Enquanto a obra estiver parada, estamos perdendo dinheiro”, lamenta. “Eu sou a primeira a concordar com tudo, quero que as coisas andem”, diz. Um pingo de esperança de que o nó jurídico pode ser desfeito surgiu no início do ano, com o lançamento de Relicário, álbum póstumo de João Gilberto com o registro ao vivo do show que ele fez no Sesc Vila Mariana, em 1998. O disco traz a faixa Rei sem Coroa, nunca gravada em estúdio pelo artista. Para resgatar as pérolas de seu repertório, Bebel teve de pedir autorização à inventariante do espólio de João Gilberto. Ela se vale de sua cachorrinha, Ella, batizada em homenagem à lenda do jazz, para ironizar a situação. “Quando os netos de Ella nascerem, talvez consigam aproveitar o legado de papai”, diz. Enquanto isso, seu belo disco ajuda a matar a saudade.

“A saudade só aumenta”
Bebel Gilberto conta porque só agora, aos 57 anos, gravou as músicas do pai — e fala sobre a disputa judicial em família pelo espólio do artista.

PAI E FILHA - Carinho: Bebel em 1968, aos 2 anos, brincando com João Gilberto
PAI E FILHA - Carinho: Bebel em 1968, aos 2 anos, brincando com João Gilberto (//Arquivo pessoal)

É a primeira vez que você grava canções de seu pai. Por que só agora? É um presente para o papai. Quando ele morreu, me sentia megaculpada. Nunca havia gravado nada por medo da sua opinião. Sempre fui muito próxima dele, mas já não conseguia encontrar um momento para conversar porque ele nunca estava sozinho. Achei que por meio da música eu estaria finalmente me comunicando com ele.

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O álbum é também uma homenagem à bossa nova? É uma carta de amor, papai não gostava de rótulos. Era o som do João, o jeito dele de tocar. Eu, humildemente, penso que também posso fazer o “som da Bebel”. Me inspirei nos arranjos originais dele, mas sem imitar.

Como lida com o luto quatro anos após a perda de seus pais? Não me recuperei. Estou mais aliviada, mas não diria que estou em paz com a saudade, porque ela só aumenta. O disco é uma maneira de fazer com que a obra dele continue circulando.

Em que pé está a disputa judicial pelo espólio do seu pai? Em segredo de Justiça. Sou a primeira a querer concordar com tudo. Quero que as coisas andem. Não interessa quem ganhará 25 ou 50. Com a obra dele parada, ninguém ganha nada. O fato de o papai não ter deixado testamento também não ajudou. Não vou nomear de quem é a culpa. Se eu fosse filha única, já estaria resolvido.

Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2023, edição nº 2856

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Bebel Gilberto – Agora
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Bebel Gilberto – Tanto Tempo

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