Há pouco mais de um mês, Donald Trump, candidato à Presidência dos Estados Unidos, surgiu triunfante, em um vídeo de apenas dez segundos, descendo de seu avião ao som da possante Seven Nation Army, da extinta banda de rock White Stripes. A letra dava o tom dramático da cena, aludindo ao atentado sofrido pelo republicano: “Estou sangrando, bem diante do Senhor / Todas as palavras vão sangrar de mim”. Os ex-integrantes do grupo, Jack e Meg White, que sempre se manifestaram contra Trump, não gostaram da história e abriram um processo contra o bilionário por uso indevido. “Esta máquina processa fascistas”, escreveu Jack, fera da guitarra, ao postar uma foto do documento, fazendo trocadilho com o lema que o mítico cantor country Woody Guthrie (1912-1967) exibia em seu violão (“Esta máquina mata fascistas”).
Elephant – The White Stripes [Disco de vinil]
O uso de músicas em comícios ou em programas eleitorais sempre incomodou os artistas. Antes, no entanto, essas dissonâncias ficavam restritas às campanhas oficiais. Hoje, com eleições ultrapolarizadas à vista nos Estados Unidos, a prática atingiu um ponto de tensão máxima. Impedir o uso desautorizado virou uma luta difícil para os músicos. Com os avanços da inteligência artificial, das fake news e da pulverização de vídeos feitos por partidários nas redes, virou uma inglória briga de gato e rato evitar que as canções sejam usadas sem autorização.
Fogo e fúria: Por dentro da Casa Branca de Trump – Michael Wolff
O comportamento sem freios de Trump está testando a resistência dos artistas na era da desinformação. Apelar às esferas jurídicas americanas contra seus avanços sobre a música alheia é complexo. Apesar de a lei de direitos autorais do país estar ao lado dos artistas, um processo como esse é caro e demorado — e o músico corre o risco de perder fãs eleitores do outro lado. A solução mais palpável continua sendo via notificações extrajudiciais. ABBA, Beyoncé, Foo Fighters e os espólios de Isaac Hayes e Sinéad O’Connor — além de Johnny Marr, ex-integrante dos Smiths — já se valeram delas contra o uso de suas canções. Teve até deboche de Céline Dion contra Trump, após ouvir My Heart Will Go On, tema do filme Titanic, em uma peça eleitoral. “Você está falando sério, essa música?”, ela escreveu.
Taylor Swift: A história completa – Chas Newkey-Burden
A mais recente frente da batalha se desenrola no uso da inteligência artificial em deepfakes — que surgem do nada, são replicadas à exaustão e depois somem nos desvãos da internet. O antídoto encontrado pelos artistas foi escancarar seus votos. No fim de agosto, Trump usou imagens geradas por IA que mostravam Taylor Swift o apoiando. “Eu aceito”, escreveu o republicano na legenda, como se tivesse mesmo recebido o endosso. Alguns dias depois, após o debate do ex-presidente com Kamala Harris, Swift postou um texto falando dos perigos da IA e da manipulação. “A maneira mais simples de combater a desinformação é com a verdade. Votarei em Kamala Harris e Tim Walz”, escreveu. O gesto despertou a fúria de Trump, que postou em letras maiúsculas: “Eu odeio Taylor Swift”.
Lemonade – Beyoncé [Disco de vinil]
A revolta do ex-presidente diz muito sobre a importância que os jovens terão nessa eleição. Após o apoio de Taylor a Harris, o número de eleitores dessa faixa etária que se inscreveram para votar triplicou. A música, óbvio, é uma arma poderosa na corrida pelo voto da geração Z. Isso ocorre também no Brasil, tendo o funk como carro-chefe (leia mais no quadro). Nos Estados Unidos, Trump não é o primeiro político republicano impopular entre os músicos. No final dos anos 1980, George H. W. Bush teve dificuldades em conseguir autorizações e apelou, ironicamente, para o uso de This Land Is Your Land, de Woody Guthrie (aquele do violão que mata fascistas). Mas até mesmo candidatos democratas já tiveram músicas negadas. Hillary Clinton, em 2016, retuitou um vídeo com a música Rebel Girl, da banda punk Bikini Kill, e depois teve de apagá-lo.
Apostando na impunidade, Trump segue com suas provocações. Recentemente, postou outro vídeo descendo do avião — dessa vez, ao som de Freedom, de Beyoncé. A cantora notificou o político, mas ainda não entrou com processo. A mesma música já havia sido adotada como hino oficial da campanha de Kamala Harris, com as bençãos de Beyoncé. A playlist da discórdia segue fazendo barulho.
Cabos eleitorais do barulho
Enquanto na campanha americana os artistas estão em guerra com Trump, nas eleições municipais do Brasil acontece um movimento curioso: após décadas sendo visto como marginal e politicamente tóxico, o funk agora é cortejado pelos políticos — e isso causa incômodo em uma parcela “purista” de seus adeptos. Candidatos em busca do voto dos jovens estão se aliando ao funk e a seu principal derivado, o trap — incluindo políticos mais alinhados às pautas conservadoras e de direita. Em São Paulo, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) visitou a GR6, maior produtora de funk da cidade, e posou para fotos com o dono, Rodrigo Oliveira. Pablo Marçal (PRTB) foi atrás do concorrente dele, Henrique Viana, da Love Funk, e foi recebido com festa. As boas-vindas dos donos dessas empresas aos políticos foram criticadas por ídolos veteranos da periferia. Mano Brown, do Racionais MC’s, disse que “os nossos estão tomando decisões contrárias às nossas”. Nas redes, fãs resgataram um vídeo em que Marçal critica o funk, chamando quem o escuta “de corno, preguiçoso, estuprador e vagabundo”. Tabata Amaral (PSB) também entrou na dança e convidou KondZilla, dono de uma das maiores produtoras de clipes de funk do país, para seu conselho estratégico.
No Rio, a batalha pelo funk ganha formas ainda mais inusitadas. Tanto o prefeito Eduardo Paes quanto Alexandre Ramagem (PL), apoiado por Bolsonaro, usam como jingles versões da “singela” Te Maceto Depois do Baile, do MC Rodrigo do CN, com anuência do próprio. A adesão de Ramagem, visto até dançando funk em comício, irritou artistas como Filipe Ret. Defensor da maconha e um dos funkeiros mais ouvidos do país, ele reclamou que gêneros musicais historicamente discriminados sustentem “posições políticas decadentes”.
Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2024, edição nº 2912