Em 1993, o Nirvana causou barulho no Brasil. A banda de Seattle tocou para 110 000 pessoas no Estádio do Morumbi, em São Paulo — a maior plateia em sua explosiva carreira. Dias depois, apresentou-se com igual sucesso no Rio, na Praça da Apoteose. Com muitos dias livres no país, o trio abusou das drogas em noitadas insanas. No Rio, Kurt Cobain, Krist Novoselic e Dave Grohl saltaram de asa-delta, assistiram a um ensaio de escola de samba, tentaram gravar músicas no estúdio da BMG Ariola e quase foram presos por arruaça de madrugada. Mas o que marcou a visita ao país foi o pavoroso desempenho nas duas apresentações. “Devem ter sido os piores shows que o Nirvana já fez”, escreve o jornalista britânico Everett True na biografia Nirvana — A Verdadeira História, que chega às livrarias em 24 de agosto.
Repórter da Melody Maker, extinto semanário de música do Reino Unido, True acompanhou o grupo de perto desde a formação, em 1987, até seus lances finais. Do livro sai um retrato alentado da banda que ocupa lugar singular na crônica da música: o Nirvana personificou o último suspiro autêntico da rebeldia no rock. Formado na gélida Aberdeen, cidade sem perspectiva social e econômica para a juventude, o grupo projetou seu estilo grunge pelo mundo inteiro, influenciando até a moda com suas camisas de flanela surradas e calças jeans.
Nirvana: A verdadeira história
Foi navegando na linha tênue que separa postura transgressiva da autodestruição que o Nirvana se firmou como força cultural. Mas a mesma energia primal expressa em hits como Smells Like Teen Spirit acabou se voltando contra a banda. Com o empurrão da MTV, o grupo logo foi convertido em mais um subproduto do pop, jogando seus integrantes na máquina de moer carne do showbiz. Dono de saúde mental fragilizada, Kurt Cobain sucumbiu tragicamente ao abuso das drogas e à superexposição: em 1994, tirou a própria vida com um tiro de espingarda.
Everett True acompanhou de perto a gangorra emocional de Kurt. No livro, o autor surge como espectador privilegiado — foi, inclusive, o responsável por apresentar Cobain a Courtney Love, sua futura esposa. O autor relembra momentos como o histórico show no Festival de Reading, na Inglaterra, em 1992, um dos melhores momentos da banda — curiosamente, poucos meses antes da passagem constrangedora pelo Brasil. True participou da apresentação empurrando Cobain em uma cadeira de rodas pelo palco. A ideia era fazer troça com o estado de saúde do músico, que havia se internado para tratar o vício em heroína. “A performance no Reading, em 1992, foi uma aberração. O trio estava obviamente se divertindo, mas a criatividade coletiva do grupo estava quase esgotada”, constata True.
A serviço do servo: os bastidores de Kurt Cobain
O Nirvana também se via cada vez mais refém do comportamento errático de Cobain. A tensa apresentação no Brasil foi reflexo da turbulência que o vocalista enfrentava. Em São Paulo, Cobain teve uma violenta discussão com Courtney no hotel Maksoud Plaza, e ameaçou pular da varanda que dava para o lobby. Para além das sandices, a biografia levanta aspectos da vida do cantor, como seus posicionamentos contra a homofobia e o racismo, além do interesse por cross-dressing (uso de roupas femininas). Cobain teria engrossado, assim, a lista de roqueiros a desafiar o machismo no meio. No show do Rio, aliás, ele se apresentou com um vestido de Courtney. Hoje, um pedaço do legado do Nirvana sobrevive no Foo Fighters, de Dave Grohl. Mas o rock jamais foi tão perigoso.
Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2023, edição nº 2854
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