Como Seu Jorge foi da infância miserável a bamba tipo exportação
O cantor a VEJA: 'Levo a cultura nacional comigo'

Em junho de 2017, Jorge Mário da Silva, o Seu Jorge, estava numa van em Los Angeles com sua banda quando viu no letreiro do Hollywood Bowl o anúncio de seu show, com ingressos esgotados. O músico pediu então para estacionarem o carro, sentou-se na borda da calçada, acendeu um cigarro — e chorou. Foi ali, enquanto derramava lágrimas diante da fachada do célebre anfiteatro hollywoodiano, que sua ficha caiu: ele finalmente havia vencido na vida. Naqueles minutos, Seu Jorge repassou toda sua vida, desde a infância pobre em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, onde viveu com a família até os 12 anos em um barraco num terreno invadido, até chegar a seu momento de glória como artista. Poucas horas depois, ele subiu ao palco acompanhado de uma orquestra regida pelo maestro David Campbell para tocar, diante de uma plateia de 17 000 pessoas, versões em português de hits de David Bowie — que, pouco antes de morrer, em 2016, elogiara o modo como o brasileiro havia adicionado “um novo nível de beleza” às suas canções. Em seguida, Seu Jorge fez ainda outros concorridos shows em templos da música mundial, como o Royal Albert Hall, em Londres, e o Olympia, em Paris.

Hoje aos 54 anos, Seu Jorge é dono de uma trajetória singular. Na juventude, viveu nas ruas até ser abrigado por um grupo de teatro do Rio e formar a banda Farofa Carioca, no início dos anos 1990. Foi a partir dali que se lançou como cantor e ator. Talentoso, carismático e dono de uma inconfundível voz de baixo-barítono, lança agora seu primeiro álbum de inéditas em dez anos, o inspirado Baile à la Baiana, em que resgata ritmos africanos e os mescla com funk, soul e black music. O disco tempera o samba com um novo e vibrante cenário musical baiano, influenciado por ritmos afros como chula e semba. Uma mistura perfeita para agradar ao público gringo, como prova a agenda de shows esgotados em Paris, Berlim e Madri. No Brasil, será uma das atrações do C6 Fest, em São Paulo, em 25 de maio.
O novo trabalho de Seu Jorge é também uma busca por suas raízes africanas. Bisneto de negros escravizados, neto e filho de pais retintos, o músico lamenta o apagamento da história de seus antepassados. “Não foi dada a meus ancestrais a permissão de sonhar. Desobedeci a esse status quo”, disse o cantor a VEJA (leia a entrevista). E como: Seu Jorge ganhou fãs do calibre do diretor americano Wes Anderson, com quem fez A Vida Marinha com Steve Zissou (2004), e foi homenageado até com um “feriado” em Boston, o Seu Jorge Day, em 2016. Mudou-se na época para Los Angeles, onde criou três filhos que hoje têm cidadania americana. Ele mesmo, contudo, voltou ao Brasil após a pandemia por se sentir mais “à vontade” aqui. Após testes de DNA apontarem suas origens, agora busca a cidadania das ilhas Cabo Verde.

Hoje, Seu Jorge vive no Brasil com a segunda esposa, Karina Barbieri, e o filho Samba (sim, o nome peculiar gerou estresse na hora de registrar a criança no cartório). Sua produtora, a Black Service, foi instalada numa mansão em um condomínio de luxo em Barueri, na Grande São Paulo. O casarão, onde ele próprio já morou (hoje vive em outro no local), é exemplo eloquente de sua ascensão. No porão, há um imenso estúdio de última geração. Fã de carrões, mantém estacionados em frente de casa uma Lamborghini, uma Mercedes e o Fuscão preto de estimação.
Apesar do sucesso, não se viu livre do preconceito racial: em 2022, sofreu ataques racistas num show em Porto Alegre. Nunca se calou a respeito da discriminação ou da política: fez fama como o traficante Zé Galinha de Cidade de Deus e, em 2019, deu vida ao guerrilheiro Marighella num filme de Wagner Moura que enaltecia a pele negra do protagonista. O bamba tipo exportação não foge à luta.
“Levo a cultura nacional comigo”
O cantor Seu Jorge, 54 anos, fala sobre a busca por suas raízes africanas e seu sucesso internacional.

O que o levou a procurar suas origens na África? Infelizmente, não há nenhum registro dos meus antepassados que foram negros escravizados. Descobri que meus ancestrais vieram de Cabo Verde. Eu troco uma cidadania americana pela cabo-verdiana.
A que atribui seu sucesso no exterior? Tudo o que aconteceu de bom lá fora foi pelo fato de eu levar a cultura nacional comigo. Cheguei a ser elogiado por David Bowie pelas versões em português que fiz de suas músicas. Devo muito também a Cidade de Deus.
No cinema, você foi de traficante em Cidade de Deus a guerrilheiro em Marighella. Como escolhe seus papéis? Busco uma boa dramaturgia e histórias fortes. A história de Marighella é de apagamento. Após sua morte, veio a Copa de 70 e ninguém queria mais falar sobre ele.
Há novos projetos para atuar? Estou conversando com a Anna Muylaert sobre um novo filme cujo roteiro fala de um relacionamento abusivo entre um casal.
Publicado em VEJA de 28 de março de 2025, edição nº 2937