Em meados de 1986, o clima no estúdio Nas Nuvens, no Rio de Janeiro, foi do céu ao inferno em ritmo galopante. O produtor Arnolpho Lima Filho, o Liminha, havia conduzido as gravações de Selvagem?, um dos álbuns mais populares dos Paralamas do Sucesso, em atmosfera descontraída. Poucos dias depois, foi a vez de os Titãs chegarem ao QG do produtor. E a alegria deu lugar a um climão. Sisudos e empertigados em suas jaquetas de couro, eles estavam ali para gravar aquele se tornaria um disco fundamental do rock brasileiro, Cabeça Dinossauro. Mas, àquela altura, não havia bons augúrios no ar. “Baixou uma nuvem tão negra que até uma máquina de gravação suíça, novinha, estragou”, lembra Liminha.
A vida até parece uma festa: A história completa dos Titãs
O trabalho que resultaria desse início turbulento foi um disco em que os Titãs atingiram potência inédita — e um tanto do vigor criativo se deve, inegavelmente, ao próprio Liminha. O produtor esmerou-se na ocasião num papel que fez sua fama: o de grande conhecedor de técnicas musicais capaz de atuar também quase como um psicólogo (e, não raro, santo milagreiro). No caso dos Titãs, o baixo-astral logo se dissipou: a confiança que o octeto depositou no produtor foi tal que, nos momentos de bloqueio criativo, eles recorriam à experiência de Liminha para salvá-los.
Foi essa capacidade de produzir hits em série enquanto lidava com personalidades tão antagônicas quanto as dos Paralamas e dos Titãs — e a lista vai ainda de Skank a Gilberto Gil — que fez do paulistano Liminha, de 72 anos, um dos maiores produtores do Brasil. Midas oculto de alguns dos discos mais bem-sucedidos do rock e da MPB, ele teve um momento raro sob os holofotes em 2023, ao tocar com os Titãs na turnê Encontro, assumindo a guitarra que já foi de Marcelo Fromer. “Ele é um produtor extraordinário, não apenas por seu conhecimento técnico e musical enciclopédico, mas pelo fato de ser um artista inventivo e sensível que sabe dosar experiência, tradição e inovação”, diz o guitarrista Tony Bellotto.
Os Paralamas do Sucesso – Selvagem?
Liminha aposta que 2024 será ainda mais prolífico para a sua história, com a celebração dos quarenta anos do Nas Nuvens e o projeto de lançar uma autobiografia — na qual promete contar os segredos de profissão que o tornaram tão requisitado. “Ele sabe como poucos colocar as coisas nos seus devidos lugares. E uma banda precisa disso”, diz Rogério Flausino, do Jota Quest (e como precisa, às vezes). No plano financeiro, Liminha pretende ainda fazer o lançamento oficial do fundo Nas Nuvens Catalogue, criado para administrar os direitos autorais de artistas brasileiros e estrangeiros e que já conta com mais de 14 000 músicas no catálogo.
Criado numa família musical, com mãe pianista e pai apaixonado por instrumentos de cordas, Liminha já era exímio guitarrista aos 17. Frequentador do bairro da Pompeia, em São Paulo, ficou amigo nos anos 1960 de Sérgio Dias, dos Mutantes — e acabou se tornando integrante da banda, ao lado de Arnaldo Baptista, Rita Lee e do baterista Dinho Leme. Com eles, fez álbuns importantes, como Jardim Elétrico. Nos anos 1970, viajou a Paris para gravar o disco Tecnicolor, também com os Mutantes, e de lá partiu para um giro prolífico pela Inglaterra. “Liminha foi o primeiríssimo brasileiro que conheci, junto com a Rita Lee, na Londres de 1972”, diz o cantor Ritchie. Que, aliás, deve muito à habilidade do produtor: “Dez anos mais tarde, ele criou o arranjo base original de Menina Veneno”.
Nos anos seguintes, Liminha se mudaria para o Rio para trabalhar nos estúdios da PolyGram, onde tocou nas sessões de Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás, de Raul Seixas, sendo convidado em seguida para trabalhar no time da Warner Brasil, como assistente do lendário executivo André Midani. A sacada de ter seu próprio estúdio surgiu após uma gravação de Lulu Santos. Apesar de bem equipado, o lugar onde ocorreram as sessões, o velho Transamérica, mais parecia uma fábrica e não tinha nenhum conforto. Lulu reclamava que, às 9 da manhã, o ambiente já estava todo empesteado com o cheiro do quibe frito da cantina. “Era impossível ser criativo assim”, diz Liminha. Naquele mesmo ano, numa viagem a Los Angeles, veio o estalo: os estúdios americanos tinham lounge, sofá, TV e uma decoração inspiradora. Era isso que faltava no Brasil: um lugar aconchegante para os artistas criarem. “Comentei com Gilberto Gil sobre isso e ele disse, com aquele jeito baiano e generoso: ‘Faça. Te dou o dinheiro. Vai e constrói’”, lembra Liminha. Assim nasceu o Nas Nuvens, que ocupa um arejado casarão no bairro carioca do Jardim Botânico.
Pai de três filhas e avô de três netas, Liminha segue sem pretensão de diminuir o ritmo. Após lotar estádios ao redor do Brasil, ele se apresentará na despedida da turnê de reunião dos Titãs, em março, no festival Lollapalooza. Sobre a aguardada autobiografia, a curiosidade é saber até que ponto soltará o verbo sobre os babados que viu e viveu no estúdio. “O público gosta de ver o circo pegar fogo. Mas eu vou contar só o que vi”, afirma, fazendo suspense. Se o bruxo dos bastidores falar, senta que lá vem história.
Publicado em VEJA de 5 de janeiro de 2024, edição nº 2874