Quando já estava mais do que evidente que Amy Winehouse (1983-2011) era alcoólatra, seu pai, Mitch, se negou a interná-la em uma clínica de reabilitação: afinal, ela tinha shows e gravações que lhe renderiam uma grana alta. Mais tarde, Amy se viciou em heroína — droga apresentada por seu marido, Blake Fielder-Civil. As duas figuras masculinas tiveram papel essencial na vida da cantora — mas não por boas razões, como mostra o revelador documentário Amy (2015), vencedor do Oscar. Não é isso, porém, o que sugere a cinebiografia Back to Black, em cartaz nos cinemas, cujo roteiro foi autorizado por Mitch: no drama raso em torno da trágica história da cantora (interpretada por Marisa Abela), que morreu vítima de vícios, aos 27 anos, os dois são pintados como peças fundamentais no sucesso dela. Blake (Jack O’Connell) é visto como um sujeito divertido, bon vivant e o “muso inspirador” da inglesa. Já o pai (Eddie Marsan) é um taxista que se desdobrou pela carreira da filha.
Amy, minha filha – Mitch Winehouse
Infelizmente, Back to Black integra uma leva recente de cinebiografias que se propõem a contar a história de astros musicais, só que jogando para baixo do tapete toda sorte de problemas: além de Amy, fazem parte desse roteiro desafinado Bob Marley, Whitney Houston e estrelas nacionais, como Gal Costa, Mamonas Assassinas e Sidney Magal. Em breve, Michael Jackson vai reforçar a lista. Como contam com a chancela de familiares ou dos próprios cantores, momentos polêmicos — e por vezes essenciais da biografia de um artista — são suavizados, alterados ou até eliminados. O resultado são enredos anódinos, de tom chapa-branca e sem credibilidade.
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Em Bob Marley: One Love (2023), por exemplo, o longa passa ao largo dos casos extraconjugais que minaram o casamento do jamaicano. Em I Wanna Dance with Somebody — A História de Whitney Houston (2022), o vício em drogas da cantora não ganha cenas explícitas — assim como o romance lésbico, que quase ficou fora do roteiro, não fosse a insistência da diretora Kasi Lemmons: mesmo assim, o namoro foi retratado como uma fase passageira da vida de Whitney. Amy, então, era um gênio atormentado e de talento gigantesco — detalhes essenciais que se tornaram secundários no filme. Prevista para o ano que vem, a cinebiografia de Michael Jackson, com o sobrinho Jaafar Jackson na pele do músico, promete seguir a mesma trilha questionável e ignorar as muitas acusações de abuso de menores que rondam a memória do astro.
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No caso dos brasileiros, suas tramas de vida e criatividade foram vertidas em fábulas rasteiras. O mais recente lançamento, Meu Sangue Ferve por Você, sobre Sidney Magal, em cartaz nos cinemas, inventa histórias dramáticas (e bregas), como o encontro mágico dele com a esposa em um táxi. Enquanto isso, deixa de lado anedotas saborosas, como o dia em que quebraram a parede de um shopping para que Magal fugisse das fãs. A libertária Gal Costa virou menina ingênua e ativista política no filme Meu Nome É Gal, com Sophie Charlotte. Já os jovens alucinados e hilários dos Mamonas Assassinas perderam a personalidade no longa de 2023.
A estratégia é simples e equivocada: ao mantê-los no campo dos intocáveis, tais filmes almejam perpetuar a memória e o legado dos biografados — trazendo, assim, mais lucro para os envolvidos. Mas o efeito é o contrário: Back to Black foi um fracasso de público. Em outra ponta, o sincerão Bohemian Rhapsody (2018), sobre o Queen e a luta de Freddie Mercury contra a aids, é a segunda cinebiografia mais rentável da história, com 910,8 milhões de dólares em bilheteria. O show não pode parar, mas a receita do sucesso precisa ter aquela dose indispensável de verdade.
Publicado em VEJA de 31 de maio de 2024, edição nº 2895