A noite de 7 de maio de 1824 não foi uma data particularmente gloriosa para Ludwig van Beethoven (1770-1827) — ao menos na visão do próprio compositor alemão. Naquela sexta-feira, estreava em Viena uma nova criação que Beethoven, sempre lutando com suas finanças, fez de tudo para exibir ao público o quanto antes, na esperança de faturar um dinheirinho. Foi ainda necessário um tom de improviso: a peça musical era de uma ambição tão sem precedentes que instrumentistas amadores tiveram de se juntar às pressas ao conjunto do Teatro Kärntnertor — que não era, aliás, a opção dos sonhos, mas foi a única sala que aceitou as idiossincrasias do gênio irascível. Com míseros dois dias de ensaios, os cantores líricos convocados por Beethoven nem sabiam direito o que fazer no palco, até porque a presença de vozes solistas e de um coro era absolutamente inédita em sinfonias até então. Houve desafinos e sopranos que não alcançavam notas. Diante do concerto de extensão muito maior que o usual, boa parte dos 1 800 pagantes saiu antes de acabar. Mas uma turba de fãs eufóricos aplaudiu até a derradeira nota. Mesmo já mergulhado em sua notória surdez, Beethoven postou-se em cena, fazendo gestos de marcação do tempo — embora o regente de fato tenha avisado aos músicos que não o levassem a sério. A certa altura, a contralto Karoline Unger bateu em seu braço para avisar que algo estava acontecendo: só então o compositor percebeu as palmas da plateia.
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A Nona Sinfonia de Beethoven — que acaba de completar 200 anos de existência — veio ao mundo assim, inspirando a mesma sequência de sensações desconcertantes que a obra-prima costuma causar nos ouvintes. Nos primeiros movimentos, sua musicalidade é feita de caos e algaravia, com sobreposições de tons, idas e vindas vertiginosas. Só então vem a bonança: aquela melodia irresistível e reconhecível em qualquer canto do planeta vai se insinuando aos poucos, com sua simplicidade intuitiva, até explodir no soberbo finale com vozes potentes entoando os versos do poema Ode à Alegria, do alemão Friedrich Schiller (1759-1805).
Entre as tantas obras divinas criadas por Beethoven em 56 anos de vida, há monumentos como a Terceira Sinfonia (mais conhecida como Eroica), a não menos absoluta Quinta Sinfonia, as sonatas para piano ou as peças sacras. Nenhuma, porém, sintetiza as marcas do gênio como a Nona — sua última grande composição, concluída três anos antes de morrer. Humanista, desde jovem o compositor se empolgou com os ideais iluministas da Revolução Francesa, e sonhava em musicar o poema de Schiller que pregava o valor da liberdade e da fraternidade. No meio do caminho, porém, suas esperanças se nublaram: Napoleão passou de propagador da revolução a imperador, e os velhos regimes reagiram com truculência ao clamor público por liberdade. Na música, a temática política foi substituída pelo escapismo das óperas de Rossini. Beethoven, enfim, era um compositor fora de moda quando estreou a Nona Sinfonia. E foi na direção contrária às tendências: construção virtuosa e complexa, a obra só seria compreendida e executada em todas as suas nuances décadas depois, com o surgimento das grandes orquestras e dos maestros modernos.
Se a extensão de suas inovações musicais demorou a ser entendida, os elementos centrais — sua mensagem humanista e a melodia de pureza quase infantil — não demoraram a galvanizar multidões. O apelo pop foi planejado por seu criador. Beethoven queria que a Nona fosse um hino com a força do Deus Salve o Rei da Inglaterra, ou da Marseillaise francesa. Mais que isso: uma canção universal da humanidade. “Trata-se de uma obra tão fundamental que, se os ETs chegassem à Terra, a Nona Sinfonia seria a melhor maneira de mostrar o que é nossa civilização”, diz o italiano Emmanuele Baldini, spalla da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Osesp.
A peça virou o símbolo de fraternidade que Beethoven almejava. Em 1989, foi enaltecida na queda do Muro de Berlim. Na ocasião, o maestro americano Leonard Bernstein conduziu um concerto na capital alemã que entrou para a história como a celebração do fim da Guerra Fria. Hoje, é o hino da União Europeia. No cinema, também foi trilha emblemática do filme Laranja Mecânica (1971), de Stanley Kubrick, e da franquia Duro de Matar (1988). Ironicamente, o homem que espalhou a música da alegria foi infeliz na vida pessoal. Beethoven era rabugento, fracassado no amor e acossado por doenças que até hoje intrigam — na semana passada, um artigo de pesquisadores americanos baseado em um estudo com mechas de cabelo do compositor levanta a hipótese de que a surdez e até sua morte teriam sido causados por intoxicação de chumbo, presente no vinho barato que consumia. Como diz o americano Jan Swafford em sua biografia magistral do artista: “A única realização real da vida de Beethoven fora a alegria de esquecer de sua dor no êxtase de criar músicas. Nessa dimensão, a Nona é um hino não apenas à alegria redentora, mas à redenção que a música pode oferecer”. O destemor do gênio produziu um colosso clássico — e nossos ouvidos agradecem.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2024, edição nº 2892
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