Há exatos cinquenta anos, um furacão trouxe novas cores à música brasileira. Lançado em agosto de 1973, o disco de estreia dos Secos & Molhados — formado por João Ricardo, Ney Matogrosso e Gérson Conrad — continha não só canções antológicas como O Vira e Rosa de Hiroshima: com sua maquiagem e seus figurinos andróginos perfeitamente afinados à estética glitter da época, o grupo era um tapa na caretice da ditadura militar e seus shows consistiam em rituais catárticos em que a música se aliava ao visual e à dança. Como ocorre com toda arte que se preze, a memória da banda resiste e é redescoberta a cada geração — e era de esperar que a efeméride do álbum homônimo que a consagrou fosse um evento para resgatar sons e imagens raras daquela era de ouro da MPB. Só que as comemorações correm o risco de ficar sem a cereja do bolo: a série documental Primavera nos Dentes, que narra a história dos Secos & Molhados com base no livro de 2019 do jornalista Miguel de Almeida, enfrenta uma batalha judicial para cumprir a meta de lançamento ainda a tempo do cinquentenário do disco.
O caso ilustra o vespeiro tristemente comum encarado por quem deseja produzir documentários sobre grandes artistas no país. Numa parceria com a Santa Rita Filmes, do empresário Marcelo Braga, o livro começou a ser adaptado para a série dos Secos & Molhados com direção e roteiro do próprio Almeida. Após dezenas de entrevistas e do levantamento de um rico material de arquivo, todo o trabalho quase foi parar na lata de lixo devido à não autorização de uso das faixas Sangue Latino, Fala, El Rey, O Vira e Mulher Barriguda por um dos criadores do grupo, João Ricardo. Pressionado pela necessidade de cumprir o contrato de captação de 1,6 milhão de reais em recursos públicos do Fundo Setorial do Audiovisual, o produtor Braga resolveu brigar na Justiça pelo direito de usar as músicas, sob o argumento de que João Ricardo é autor de apenas 50% de cada uma delas, ao lado de diversos outros compositores — ou seja, ele não formaria maioria suficiente para proibir o uso.
Primavera nos dentes: A história do Secos & Molhados
No início de julho, uma decisão em segunda instância do Tribunal de Justiça de São Paulo causou alívio não só aos criadores de Primavera nos Dentes, mas a produtores nacionais de documentários em geral: a corte entendeu que a série poderia reproduzir as faixas em disputa, com base no interesse público e também na decisão do STF de 2015 que afastou a exigência de autorização prévia para a realização de obras biográficas. “João Ricardo não é o autor singular daquele conteúdo e não poderia proibir o uso”, explica Ivan Borges, advogado da Santa Rita Filmes. “A situação prejudicava os outros parceiros e inibia a possibilidade de contar uma história”, afirma o compositor Paulo Mendonça, que divide com o próprio a criação de Sangue Latino. Agora, protegida pela decisão recente, a produtora corre contra o tempo para lançar a série até o fim do ano pelo Canal Brasil.
Sepultura – Beneath The Remains Vinil
Assim como os Secos & Molhados, projetos que vão de Legião Urbana a Sepultura enfrentam empecilhos semelhantes que impedem a realização de documentários. O principal deles ainda é a insegurança jurídica sobre os direitos autorais. Nos Estados Unidos, há um dispositivo legal chamado de fair use (uso justo), que permite que pequenos trechos das músicas possam ser inseridos em obras biográficas, desde que não fique caracterizado o uso comercial da canção. Por falta de dispositivos que garantam essa alternativa aos produtores brasileiros, muitos filmes não chegam nem a sair do papel. A poderosa O2, de Fernando Meirelles, por exemplo, havia desistido tempos atrás de fazer uma série sobre os mesmos Secos & Molhados, pela Globoplay, depois de esbarrar na briga entre os compositores do grupo. “Assim, deixam de contar muitas histórias maravilhosas que há no Brasil”, lamenta Miguel de Almeida.
Quem resolve enfrentar as barreiras corre o risco de amargar grandes prejuízos. Também na Globoplay, o documentário As Cinco Estações, sobre Renato Russo, foi engavetado após sua realização, por não conseguir as autorizações do herdeiro do artista, Giuliano Manfredini. A razão da proibição foi que o filho de Russo já havia licenciado com outra produtora, em regime de exclusividade, os direitos para a realização de um documentário sobre a vida do compositor. No caso de Sepultura Endurance (2017), os percalços não chegaram a impedir o lançamento: o doc do diretor Otávio Juliano ficou disponível na Netflix até o início deste ano. Mas tem lacunas pesadas: os irmãos Iggor e Max Cavalera não autorizaram o uso das músicas no filme, enquanto os outros dois compositores, Paulo Xisto e Andreas Kisser, autorizaram. Ou seja, também não se formou maioria para o uso das faixas — o mesmíssimo tipo de impasse, ironicamente, que os produtores da série dos Secos & Molhados conseguiram agora reverter a seu favor na Justiça.
Embora pontual e ainda sujeita a revisões em instâncias superiores, a recente decisão acende uma luz no fim do túnel em um mercado que exibe potencial imenso. Se até há bem poucos anos os documentários musicais eram restritos a festivais ou faixas obscuras na TV paga, o advento do streaming fez deles atrações de grande audiência e repercussão. Os exemplos abundam na Netflix, com docs que desvendam de Shania Twain a Anitta, ou a recém-lançada série sobre a dupla pop Wham!, de George Michael. A Globoplay também tem seu latifúndio, com docs sobre Tim Maia, Nara Leão e Elis Regina. Os silenciados na tela querem se juntar a eles — e o espectador agradece.
Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2023, edição nº 2852
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