Nas costuras para conquistar o direito de sediar a Olimpíada – e dá-lhe política aí -, Anne Hidalgo sempre foi a figura mais entusiasmada e visível. A prefeita queria porque queria trazer os Jogos para Paris, apesar de muita testa franzida e nariz torcido dos locais, entre indiferentes e furiosos.
Aos 65 anos e em sua segunda temporada no Hôtel de Ville, a sede do poder na cidade, ela vê na grande festa que estreia hoje uma oportunidade de Paris dar um salto verde – e Hidalgo não é de pensar pequeno, não. “Vamos ser a metrópole mais sustentável do mundo”, disse em entrevista a VEJA.
O fato de ser detestada por uma fatia da população não parece abalá-la, mas, de certo modo, até lhe traz certo prazer. Um sinal de que está fazendo a coisa certa, comprando brigas que valem a pena, ela avalia.
Seus piores detratores são os motoristas, que andam sendo pouco a pouco banidos à base de vias fechadas, estacionamentos a preços estratosféricos e ciclovias aos montes. “Não dá para manter uma cidade na rota do progresso sem cutucar vespeiros”, dispara a prefeita, que circula, ela própria, a bordo de uma bicicleta, com qual não raro aparece para trabalhar.
Às vésperas da cerimônia de abertura, uma pesquisa despejou números que aferem o humor (ou mau-humor) dos parisienses em relação aos Jogos, que se apoderou de cartões-postais e tornou o ziguezague na Cidade-Luz uma missão para os mais bravos, tantos são os detours.
Eis a conclusão: somando os que não querem saber do assunto à turma de preocupados e contrariados, a conta dá 65%. Mas há uma taça meio cheia nesta equação. Atualmente, 23% dos parisienses se dizem satisfeitos – eles eram 11% dois meses atrás. “Historicamente, sempre houve na França esse espírito rebelde. Mas na hora H, com tudo funcionando, o vento muda”, relativiza Hidalgo.
“ESTRAGANDO A FESTA”
Filha de espanhóis nascida na Andaluzia, a prefeita, que é casada pela segunda vez e tem dois filhos do primeiro matrimônio, não se cansa de trocar farpas com o presidente Emmanuel Macron, com quem antagoniza em quase tudo, mas vem mantendo convívio civilizado nesta temporada olímpica.
Sempre que pode, ela não perde a chance de desconstruir o presidente. “Ele está destroçando o modelo social francês”, atira a socialista, cujo partido compõe a Nova Frente Popular, uma reunião de siglas de esquerda que vive às turras e acaba de conquistar o maior número de assentos na Assembleia Legislativa.
A convocação antecipada das eleições por Macron, aliás, enfureceu a alcaide. Aconteceu a três semanas da Olimpíada, tirando os holofotes do que agora interessa a Hidalgo: expor cartões-postais recauchutados e arborizados e exibir as melhorias na área mais empobrecida da França, Saint-Denis, onde foi plantada a Vila Olímpica e acontecerão as provas de natação, atletismo e rugby. “Fiquei chocada ao saber que o presidente dissolverá o parlamento e fará novas eleições tão pouco tempo antes dos Jogos”, declarou, arrematando: “Ele está estragando a festa.”
UM MERGULHO E UM FLASH
Não muito tempo depois, Hildalgo conseguiu atrair de volta a atenção para si, ao cumprir a promessa, para lá de postergada, de mergulhar no rio Sena – esta a grande aposta de legado dos Jogos. O curso d’água em torno do qual a cidade se organiza (margem esquerda, margem direita, as ilhas) carrega consigo a promessa de estar balneável (e os últimos testes mostram que anda mesmo bom para banho, situação que será atualizada a cada de dia de provas).
Na semana passada, Hidalgo enfim deu o seu salto triunfal, com o corpo coberto com roupa de mergulhador e sorriso farto para a foto que logo pipocou no Instagram, que ela nunca usou muito, mas passou a frequentar. Não foi a pioneira no mergulho, como havia tão meticulosamente planejado, tendo sido ultrapassada pela ministra dos Esportes de Macron, Amélie Oudéa-Castéra, que, a VEJA, espezinhou (sem citar nomes, imagina): “Ter dado um pulinho no Sena foi uma emoção daquelas que você leva para sempre.”
#ME TOO, SIM
Demonstrando vitalidade para cruzar toda Paris andando e até correndo atrás da tocha, Hidalgo é entusiasta da moda, embora diga que só se arruma mesmo ao entrar no papel de prefeita. Em encontro com a impiedosa Anne Wintour, a papisa da Vogue, ouviu: “Em Paris está a verdadeira energia”.
Adorou, claro. “As grandes cabeças da moda francesa traduzem o espírito de nosso tempo”, diz ela, que soltou uma ironia a propósito do encontro com Wintour: “Me senti até como Emily in Paris (a série em que a protagonista é uma americana que, desavisada, envereda pela cultura local).
Ao contrário de uma corrente de francesas, entre elas Catherine Deneuve, que chegaram a condenar o #MeToo por “minar a liberdade sexual”, Hidalgo abraça o movimento – essencial, segundo ela, para as mulheres terem uma voz. “Sou 100% feminista”, fala a admiradora de Simone de Beauvoir.
Hidalgo se queixa de, em pleno século XXI, as mulheres ainda serem tão reduzidas nos círculos do poder. Quanto a ela, que teve de lidar com uma derrota humilhante na corrida presidencial em que duelou justamente com Macron, um terceiro mandato à frente da cidade soa boa ideia. A ver o desenrolar dos Jogos e como fica o humor francês.