Sim, IAs podem produzir obras de arte – mesmo que você não goste disso
Nem todas e nem sempre. Mas precisamos entender que a humanidade não detém mais o monopólio da criação cultural

Não, este não é mais um texto sobre a questão da criação de imagens para redes sociais usando os traços de animação do Studio Ghibli — a maior trend de todos os tempos da última semana. O que aconteceu ali foi violação de direitos autorais, e pronto. Mas quero tratar, sim, de um debate originado na esteira dessa já (felizmente) saturada modinha: imagens criadas por IAs podem ser consideradas arte?
Meu ponto de vista é que sim, podem. Não todas, nem sempre e, como tudo na vida, uma série de fatores precisam ser considerados. Confesso que tive receio em me posicionar, pois vi muita gente que respeito e admiro dizer que não, IA não cria arte. Foi meio espiral do silêncio, sabe? Se não sabe, explico rapidamente: espiral do silêncio é um conceito criado nos anos 1970 pela cientista política alemã Elisabeth Noelle-Neumann. Estabelece que a percepção humana sobre a opinião pública pode deixar a gente com receio de discordar da maioria e ser excluído de determinados meios sociais. A cara da internet do século XXI, eu diria.
Superei a espiral do silêncio ao me lembrar de uma das exposições mais interessantes que vi nos últimos tempos, criada por uma pensadora central do uso de IA, a paulistana Giselle Beiguelman. Na mostra Venenosas, Nocivas e Suspeitas, em cartaz até dia 20 no Centro Cultural Fiesp, na Avenida Paulista, ela não só comprova que IAs podem criar arte como servem para reparar apagamentos históricos.
Beiguelman, que além de artista é professora da FAU-USP, utilizou IAs que criam imagens a partir de comandos de texto para propor paralelos entre plantas socialmente demonizadas e mulheres historicamente excluídas. Entre elas, várias cientistas que foram fundamentais na catalogação de espécies vegetais, mas cujos rostos não conhecemos — algumas porque viveram antes da invenção da fotografia, outras porque eram relegadas a segundo plano em favor de colegas do sexo masculino. Assim, nasceram registros imaginados dessas figuras outrora esquecidas, que na visão da autora aparecem fundindo-se a plantas, insetos e cogumelos. A exposição tem ainda plantas inventadas pela artista e pela IA, além de vídeos elaborados a partir de plantas que se transformam, hibridizam e viram outras criaturas, como o inserido ao longo deste texto.

O fato de a artista ter criado isso com ajuda de IA por acaso diminui o mérito de sua expressão, de sua visão de mundo? Não! Até porque, se fôssemos dizer que “sim”, teríamos de descartar junto toda e qualquer fotografia artística já criada. Retornar essa forma de expressão à condição de registro documental, em vez de fotografia-expressão, terminologia proposta pelo autor francês André Rouillé. Afinal, a câmera também é um recurso não humano usado para criar arte.
Aliás, cabe apontar que a fotografia passou a ser aceita como arte há não muito tempo. Segundo o mesmo Rouillé, lá pelos anos 1970 – o que me faz pensar que cresci num mundo em que obviamente foto pode ser arte, mas o mesmo não poderia ser dito da geração dos meus pais. E talvez um dia nossos filhos achem patético o presente debate. O fato é que não temos distanciamento histórico suficiente para entender se as imagens criadas por inteligência artificial configuram apenas um modismo ou vão se consolidar como uma nova escola artística. Mas que elas podem criar arte, isso podem.
Citei o trabalho de Giselle Beiguelman, mas existem outros exemplos de máquinas produtoras de arte – até mesmo sem comandos humanos no momento da confecção das obras. O mais famoso é o Botto, nome criado a partir da palavra “bot”, que produz de maneira autônoma milhares de imagens semanalmente, sem prompts humanos. O criador do autômato, Mario Klingemann, avalia as peças com uma comunidade de 15 mil artistas. Juntos, escolhem as melhores, leiloadas como NFTs. Algumas já foram leiloadas pela tradicional casa de leilões Christie’s, expostos na Sotheby’s, dentre outros acenos do mercado institucionalizado da arte. Há quem goste, há quem odeie — eu mesmo não sou muito fã, admito – mas precisamos lidar com a ideia de que nós, humanos, não detemos mais o monopólio da criação e expressão cultural.

Vivemos um momento em que a convivência intensa com a tecnologia acelera uma tendência surgida nas últimas décadas: a da redefinição do que entendemos por humanidade. Somos o que nossos corpos determinam? Somos o que criamos de nós nas redes digitais? Ao mesmo tempo, objetos ganham “cérebros” e passam a ser considerados “smart”. Assim, objetos transitam para o posto de sujeitos, e a vida no futuro aponta para essa convergência.
O que, naturalmente, cria novas questões de legislação. Seria possível argumentar que as IAs criam imagens apenas porque foram alimentadas com milhões de outras imagens, estas produzidas por artistas humanos. É verdade, e a questão dos direitos autorais ainda precisa ser debatida a fundo, especialmente num mundo em que as big techs multiplicam seus bilhões enquanto criadores multiplicam seus boletos.
Mas isso não elimina o status artístico do que se pode fabricar com essas ferramentas, especialmente quando a sensibilidade humana está no comando do processo. Seria possível argumentar que a definição de arte é um tanto elástica, por vezes subjetiva, e mereceria um texto inteiro, coisa que talvez eu faça em algum momento. Cabe apontar também, como diz meu amigo e professor Luiz Antônio Santana, da Universidade Federal do Amazonas, que nada se cria do zero. Mesmo os artistas de carne e osso elaboram seus trabalhos a partir de seu próprio repertório de referências. “Antes se fazia com pincel e tintas, depois com uma Canon e hoje com uma inteligência artificial.”