Esse Carnaval decididamente não vai ser igual aquele que passou. Vejo em reportagem na TV que estamos na era da folia politicamente correta e o que já foi gaiatice popular agora é considerado material altamente ofensivo. Clássicos de outros carnavais são chamados de “marchinhas preconceituosas”, causam espécie entre os foliões socialmente conscientes e estão sujeitos à problematização e ao boicote. A moça que brinca em um bloco, dá um breque no samba e responde indignada ao ser interpelada pela repórter: “Olha a cabeleira do Zezé, será que ele é O QUÊ?”. Outra garota confessa se sentir incomodada e desanimada quando, no meio da animação, a banda toca e o povo canta O Teu Cabelo Não Nega. Enquanto o líder de ode um bloco afirma, fazendo cara de conteúdo, que só mesmo um homem branco para se sentir à vontade com o verso “Mas como a cor não pega, mulata”. Não é preciso dizer que Maria Sapatão está barrada no baile, apesar de “é um barato é um sucesso dentro de fora do Brasil”. Não pode. Senhor juiz, pare agora.
Seria cômico se não fosse bobo. Nem vale a pena argumentar que a marchinha de Lamartine Babo é uma ode à beleza nacional, no caso a mulata, e segue: “Quem te inventou, meu pancadão/Teve uma consagração/A lua te invejando faz careta/Porque, mulata, tu não és deste planeta”. Diriam que o compositor era tão machista e racista que reduziu a mulher negra à condição de alienígena. Aliás, não se sabe mais quem foi Lamartine Babo.
Bobagem pensar que a problematização politicamente correta não chegaria às marchinhas carnavalescas – ingênuas, brejeiras e brincalhonas – quando até os contos de fadas hoje são vistos como nocivos e instrumentos de opressão – circula a versão de que o beijo do príncipe na Bela Adormecida na verdade seria um estupro. Também a ironia é considerada suspeita de ser agente do mal e humor deve ser encarado com cuidado para ser dirigido ao opressor, nunca ao oprimido. Se engraçado ou não é mero detalhe.
Durante a ditadura, quando humor era visto como ameaça à moral e aos bons costumes, humoristas evitavam a política, por causa da censura, mas quando podiam deitavam e rolavam sobre o papo cabeça dos intelectuais. Foi assim que apareceu, em um programa da Globo, a “novela cultura”, 12 Raiz Quadrada de 144 – o significado da palavra “ditirambo” era um dos mistérios da trama – e também o esquete que dissecava a canção Nana Neném como terrível instrumento de opressão infantil – “a Cuca vem pegar” – e negligência paterna – “papai foi pra roça, mamãe no cafezal”. Não duvido que hoje muita gente levaria isso a sério. E tome textão nas redes sociais.
Com certeza, na folia 2017 devem surgir marchinhas de protesto, com conteúdo diversificador contemplando o lugar de fala das minorias em uma disrupção que possibilite a ressignificação o gênero. Aguardo ansiosamente.
Difícil vai ser, depois da terceira dose, discordar do fato que a mulata ainda é a tal.