A epopeia da luta contra a corrupção no Brasil
A resistência à PEC da Blindagem foi um oásis num deserto de letargia social
Passamos por tempos sombrios no mundo quando a corrupção era tida como comportamento normalizado, chegando ao ponto de ser a propina abatida no imposto de renda, nos termos do Código Tributário da França.
Todavia, a partir dos anos 1980 e 1990 a mentalidade começou a mudar, construindo-se em 1997 a Convenção da OCDE (Organização para a Cooperação do Desenvolvimento Econômico), considerada ponto da virada internacional contra a corrupção, em cujo artigo 5º está prevista a impossibilidade de se deixar de punir a corrupção sob o argumento de dano à cadeia econômica produtiva.
Desse modo, atende-se ao interesse dos empreendedores íntegros em ver punidos os corruptos por tornarem nebuloso e imprevisível o mercado, com quebra da lisura dos negócios e da confiança, com prevalência do salve-se-quem-puder.
De lá para cá tivemos muitos avanços em nível mundial e em muitos países a corrupção está contida, enquanto no Brasil ela está totalmente fora de controle. Tal se dá, especialmente, por não termos, como nunca tivemos, uma política pública anticorrupção. Pelo contrário: em nossa história sempre vigeu a cultura do compadrio, o patrimonialismo arraigado, a falta de transparência.
É certo termos tido marcos legais importantes, como a Lei de Improbidade, a Lei da Ficha Limpa, a Lei da Delação Premiada, a Lei Anticorrupção, a Lei de Acesso à Informação, a Lei das Estatais entre outras. Gostaríamos, contudo, de analisar determinado período e seus desdobramentos. Em 2014, a Lava Jato apresentou-se como força-tarefa envolvendo Ministério Público Federal, Polícia Federal e Receita Federal atuando de forma colaborativa no enfrentamento da corrupção de grosso calibre.
Sem entrarmos profundamente no mérito das condutas de Procuradores e do Magistrado, é fato público ter o Magistrado se exonerado do cargo de Juiz Federal após 22 anos de carreira para aceitar convite do político beneficiário de sua decisão judicial, em razão da qual seu adversário na corrida presidencial se tornou ficha suja. E mais, veio a ser Ministro da Justiça e Segurança Pública do beneficiário de sua sentença condenatória.
Depois disto acabou exonerado e hoje é senador, pré-candidato ao Governo do Paraná. O Procurador da República exonerou-se e elegeu-se deputado federal, sendo cassado pelo TSE e hoje é pré-candidato a Senador pelo Paraná.
Inquestionavelmente, o trabalho apresentava-se como importante do ponto de vista da sociedade, pelo enfrentamento da corrupção. Entretanto, após a revelação de diálogos entre o Magistrado e o Procurador, ainda que sujeitos a edição e obtidos de forma criminosa, não foram negados de forma peremptória pelos interlocutores. E por esta razão, os conteúdos ali contidos e outros fatos, acabaram gerando danos à imagem da Lava Jato, bem como à imagem de ambos assim como ao próprio combate à corrupção.
A dúvida, que juridicamente beneficia acusados, somada a este contexto, levou à anulação de processos trazendo a amarga sensação de impunidade. Foram apresentadas pelos Procuradores as Dez Medidas contra a Corrupção com 2,5 milhões de assinaturas, que foram recebidas pelo Congresso, pela forma como veiculadas à população, como algo impositivo.
Com efeito, colocaram-se as propostas como medidas obrigatórias ao Legislativo, impondo-se seu acatamento pelos congressistas. Sentindo-se afrontados, aquele foi o ponto de inflexão a partir do qual se inicia um processo de desmonte do instrumental jurídico de proteção ao patrimônio público.
A nova lei de abuso de autoridade foi o primeiro ovo da serpente, com nítido propósito de retaliação contra magistrados e membros do MP, sem qualquer previsão de punição a congressistas por atos de abuso de poder. As sequenciais anistias aos partidos, o desmonte da Lei de Improbidade em 2021 e da Lei da Ficha Limpa neste ano são novas evidências que sinalizam a continuidade deste lamentável processo.
Além disto, deparamo-nos com um bolo das emendas parlamentares que cresceu em valor 25.100% em 11 anos, atingindo este ano 50,4 bilhões, ultrapassando a dotação de 30 dos 39 ministérios, enquanto no mesmo período o salário mínimo cresceu 109%. É a quebra visceral do princípio da separação dos poderes.
A resistência à PEC da Blindagem em 21 de setembro foi um oásis num deserto de letargia social. Espera-se que seja o início de um novo tempo com mais consciência, mobilização e luta em prol da integridade, por um país mais justo para a nossa e para as futuras gerações.
Miguel Reale Jr – advogado, ex-Ministro da Justiça, professor sênior titular da Faculdade de Direito da USP e Conselheiro do INAC
Roberto Livianu – procurador de Justiça, doutor em Direito pela USP, idealizador e presidente do INAC, e membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas.
Novo espaço do Instituto Não Aceito Corrupção (INAC) em VEJA
Nossa coluna inaugura um espaço de diálogo plural multifacetado dentro da VEJA, sobre transparência, integridade, compliance, ESG, prevenção e combate à corrupção, trazendo semanalmente contribuições de pensadores diferentes do INAC.
E não poderia começar melhor do que trazendo os personagens envolvidos na tese de doutorado que deu origem ao INAC há 10 anos. Orientando e orientador na Faculdade de Direito da USP. Debater é preciso! Uma honra para nós esta parceria!







