O procurador-geral da República, Paulo Gonet Branco, se manifestou nesta terça-feira contra uma ação do partido Novo no STF que questiona a legalidade da Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos do TCU, a SecexConsenso, criada pelo presidente do tribunal, Bruno Dantas, no fim de 2022.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 1.183 tem como relator no Supremo o ministro Edson Fachin. O Novo alegou que a criação da pasta pelo Tribunal de Contas da União, no começo do ano passado, violou os princípios da separação dos poderes, da legalidade e da moralidade administrativa, bem como do regime constitucional de atribuições da Corte e pediu a suspensão da instrução normativa que instituiu a SecexConsenso e a declaração da inconstitucionalidade do ato.
Em sua manifestação, o chefe da PGR apontou que “falta substância persuasiva para a censura à atuação prescrita ao Presidente do TCU”. “Por outro lado, a regulação do modo de desenvolver competências legais e constitucionais da Corte pela própria Corte expressa poder de autodireção do Tribunal, que prescinde de lei específica. Não se trata, portanto, de assunto submetido a reserva legal”, complementou.
Gonet Branco concluiu o parecer defendendo o conhecimento da arguição como ação direta de inconstitucionalidade e, no mérito, pela improcedência do pedido.
Veja a seguir os argumentos do procurador-geral da República a favor da atuação do TCU, na íntegra:
“Conquanto haja legislação dispondo de incentivo a procedimentos de conciliação para a resolução de conflitos submetidos ao crivo de órgãos do Estado, a instrução normativa em causa não se esgota no mero aspecto regulamentar de normas primárias. A Instrução expede regras, estipula competências, prevê procedimentos, assumindo feitio de normas gerais e abstratas, passíveis de análise em controle abstrato. Ainda que a Instrução Normativa resulte de uma competência genérica disposta na lei, não dispõe no sentido de minudenciar regramento delineado pelo legislador. Não há, aqui, ato de natureza meramente regulamentar, este sim impróprio ao controle direto de constitucionalidade, uma vez que a inconstitucionalidade, nesses casos outros, adviria do desrespeito do regulamento aos limites impostos pelo legislador ao disciplinar um segmento da realidade. No caso destes autos, a Instrução Normativa não regulamenta lei alguma que haja disposto sobre conciliação no âmbito do TCU, de modo a que se pudesse entender que a controvérsia se ateria ao cotejo da lei com o ato regulamentador.
É cabível o controle abstrato. Decerto que o ato pode ser apurado quanto à sua regularidade constitucional por meio de ação direta de inconstitucionalidade, o que torna indevido o recurso ao instrumento subsidiário da arguição de descumprimento de preceito fundamental. A questão posta, entretanto, há de ser conhecida no seu mérito, em função do princípio da fungibilidade das formas em apreço.
A Lei Orgânica do TCU autoriza, expressamente, que a Corte de Contas expeça instruções normativas sobre matérias inseridas no âmbito das suas atribuições. De seu turno, a Lei n. 13.140/2015 regula a possibilidade de adoção do instituto da mediação envolvendo a Administração Pública, como meio de solução de conflitos com particulares, tendo como princípios orientadores o método autocompositivo, a autonomia da vontade das partes e a busca do consenso (art. 2º, V e VI).
O ato impugnado disciplinou o tema, portanto, que já possuía articulação legal favorável à sua introdução na prática do Tribunal. A instituição, no âmbito do TCU, de procedimentos de solução consensual de controvérsias relevantes e de prevenção de conflitos relativos a órgãos e entidades da Administração Pública Federal confere efeito às previsões encartadas na legislação ordinária; em especial, as previstas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e no Código de Processo Civil, que estimulam e conferem primazia a métodos alternativos de solução consensual de litígios. O CPC, em favor de soluções consensuais, determina a criação de câmaras de mediação e conciliação no âmbito administrativo. A previsão também está assentada na Lei n. 13.140/2015.
Observo que, da mesma sorte, o Decreto n. 9.830/2019, que regulamenta os arts. 20 a 30 da LINDB, no seu art. 13, § 1º, manda que a atuação dos órgãos de controle privilegie ações preventivas sobre medidas sancionadoras ou repressivas.
A Instrução Normativa n. 91/2022 se harmoniza com as normas acima referidas, bem assim com os arts. 70 e 71, IX, da Constituição.
A IN n. 91/2022 não confere ao TCU poderes excessivos para dirigir os procedimentos de solução consensual de conflitos. A busca da intermediação do Tribunal de Contas não é mandatória, constituindo faculdade das partes interessadas, a quem se abre a opção de apresentar propostas de resolução de controvérsias. A leitura da Instrução o revela, ao dispor que o mecanismo depende de solicitação formulada pelas pessoas que indica e ao cobrar, como condição para que seja instaurado, que se obtenha a “manifestação de interesse na solução consensual dos órgãos e entidades da administração pública federal envolvidos” (art. 3º, V).
Em nada se deduz das regras criadas a imposição de soluções por parte do TCU. O órgão opera para produzir consenso em torno de temas que se inserem na extensão da sua competência constitucional. Se, no prazo de 90 dias, prorrogável por igual período, não se construir um entendimento comum, o procedimento é arquivado (art. 7º, § 5º), sem sanção para os interessados nem prejuízo ao exercício pleno das atribuições do TCU.
A Instrução, além disso, não dilata a esfera constitucional das competências do Tribunal de Contas. A Secretaria atua em temas que são sujeitos ao crivo da Corte especial, e a Instrução não formula ensejo a desates que estejam em desacordo com o ordenamento jurídico, com os princípios constitucionais reitores da Administração Pública, nem mesmo admite que sejam desavindos da inteligência jurisprudencial do próprio TCU. Por isso mesmo, o ato normativo estipula a participação de agentes da Corte na fase de ajuste do consenso e também depois de o ajuste ser reduzido a termo. Esse cuidado se acha estampado no art. 8º da Instrução, que também designa prazo para que o Ministério Público junto ao TCU se manifeste sobre a proposta. O zelo pela correção do acordado se expressa, mais uma vez, no art. 10, que impõe que o acordo seja distribuído a Ministro integrante do Plenário, para que ali seja examinado, possa receber sugestões de melhoramento ou, ainda, vir a ser arquivado (art. 11). A natureza proposicional do trabalho do Tribunal de Contas da União se dá a conhecer, de novo, pela previsão, nos §§ do art. 11, do arquivamento do procedimento, se qualquer dos atores da comissão de solução consensual, os diretamente interessados no problema, discordar do que sugerido pelo Plenário.
Não há se levantar contra a Instrução o argumento de que a fiscalização do TCU deveria se realizar inexoravelmente a posteriori. A Constituição não impõe que a atuação do Tribunal de Contas seja necessariamente restrita ao campo da repressão dos atos impróprios. No âmbito das competências do Tribunal de Contas se tem a apreciação e julgamento de contas prestadas, mas também lhe é atribuído fiscalizar a aplicação de recursos, mediante, até, inspeções e auditorias. O mesmo se nota da competência do art. 71, IX, da Constituição, que, pela sua dicção mesma, alcança situações em curso de ilegalidade.
Tudo aponta para a legitimidade da atuação não apenas repressiva, mas também preventiva, ou corretiva de percurso, da Corte de Contas. Essa realidade foi assinalada em decisões do Supremo Tribunal como esta, composta pelo Ministro Gilmar Mendes:
O controle externo da ação administrativa, quanto a critérios de legalidade, legitimidade e economicidade, é realizado pelo Poder Legislativo com o auxílio dos Tribunais de Contas. Nos anos recentes, nota-se significativo incremento da atuação das Cortes de Contas, em especial do Tribunal de Contas da União, no controle externo das atividades da Administração Pública. São duas as novas vertentes que têm contribuído para a ampliação do tradicional espectro do controle externo: o controle da eficiência da aplicação dos recursos públicos com fundamento em critérios técnico-especializados; e o controle preventivo das ações administrativas, com o acompanhamento sistemático dos programas governamentais, inclusive ao longo da sua formulação.
O controle exercido pelo TCU nos procedimentos de solicitação de solução consensual em nada destoa da natureza da fiscalização contábil, financeira e orçamentária delineada nos arts. 70 e 71 da Constituição da República. Ao contrário, assoma-se como instrumento vivificador dos valores do art. 37, caput, que, em última análise, figuram a pedra angular da arquitetura de todo o sistema de controle externo.
É, por fim, graciosa e improcedente a crítica de conflito das atribuições do Presidente do TCU no procedimento com o princípio republicano ou com o da moralidade administrativa.
O Presidente do TCU não interfere nas negociações. Sua atuação se concentra no momento inicial da admissibilidade, que se encontra pautada por critérios objetivos (art. 5º e parágrafo). Ressalte-se que o procedimento não é de instauração impositiva por lei, o que realça a possibilidade da margem de discricionariedade na apreciação dos seus requisitos, no juízo que a Instrução entrega ao Presidente do TCU. Nota-se o salutar cuidado em se respeitar a relatoria de processos já instaurados; o Ministro que os conduz está investido do poder de rejeitar o procedimento solicitado, mesmo que tenha recebido a anuência inicial do Presidente da Corte (art. 6º e §§). Observe-se, afinal, que não é o Presidente da Corte quem decide pela acolhida do acordo, atribuição esta do Plenário. A ele incumbe, diferentemente, formalizar a solução abonada pelos seus pares (art. 12).
Vê-se, portanto, que falta substância persuasiva para a censura à atuação prescrita ao Presidente do TCU.
Por outro lado, a regulação do modo de desenvolver competências legais e constitucionais da Corte pela própria Corte expressa poder de autodireção do Tribunal, que prescinde de lei específica. Não se trata, portanto, de assunto submetido a reserva legal.
O parecer é pelo conhecimento da arguição como ação direta de inconstitucionalidade, e, no mérito, pela improcedência do pedido.
Brasília, 1º de outubro de 2024.
Paulo Gonet Branco
Procurador-Geral da República