O coronavírus chegou ao Brasil, e é o único assunto possível nesta semana. Talvez neste mês. Neste ano? É impossível prever o alcance dos danos que a pandemia ainda causará no país e no mundo. Na cultura, os impactos já são enormes: começou com o cancelamento ou adiamento de importantes feiras culturais e de negócios, como a Feira do Livro de Paris, de Londres, a Feira do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha, a Art Basel Hong Kong, e de shows e festivais de música, como o Coachella e o Lollapalooza. Agora, cinemas e teatros estão fechados, shows da Broadway foram suspensos, filmagens e lançamentos de filmes e séries estão adiados — até as novelas da Globo foram afetadas. Na Europa, museus e monumentos históricos também não abrem mais. No mercado global, a perda no setor de entretenimento está na casa dos 5 bilhões de dólares.
Especialmente no Brasil, a cultura é uma das áreas que mais sofrerão. Afinal, cinemas, shows e museus pressupõem aglomerações. O esvaziamento dos palcos, livrarias e cinemas vai afetar todo um grupo de trabalhadores já tão vilipendiados pela ausência de políticas públicas e pela guerra ideológica travada pelo atual governo. Tudo isso me preocupa, e muito. Já foi dito que o papel da ficção é justamente colocar “pessoas ordinárias em situações extraordinárias” e ver como se comportam. Daí os filmes-catástrofe e livros como A Peste, de Albert Camus, e Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, cujas vendas cresceram exponencialmente diante da pandemia. Antes da realidade, cabe à literatura e às artes visuais projetar atitudes humanas e consequências sociais diante de uma grave crise.
“Podemos sair engrandecidos da pandemia, como seres humanos, como sociedade. Só depende de você”
Em situações-limite, caem as máscaras e revelamos nossa verdadeira face. Agora, de onde escrevo, tenho mesmo a impressão de ter mergulhado em uma ficção que só vem revelando o pior lado de seus personagens. Nos mercados, as prateleiras estão vazias, e as pessoas estão estocando comida, papel higiênico, álcool em gel. Em São Conrado, no Rio, um casal com coronavírus obrigou a doméstica a continuar trabalhando. Muitos confundem quarentena com feriadão, e praias, bares e restaurantes seguem lotados. Igrejas e academias ainda recebem seus fiéis. O egoísmo impera. E a ignorância também.
“Onde está o lado bom?”, você me pergunta. Realmente, há que fazer um esforço para enxergá-lo. Em meio ao caos, torço para que o coronavírus nos sirva de lição — dolorosa, sem dúvida, mas transformadora. Que seja uma chance de valorizarmos os serviços públicos de saúde, e cobrarmos isso dos governantes. Que seja uma oportunidade de exercer a solidariedade e a empatia, pensar no outro, no vulnerável, não só em si mesmo. Na Itália, o lema é: “Jovens, seus avós foram para a guerra. A vocês, só pedimos que fiquem em casa”. A agitação da vida cotidiana — reuniões, festas, prazos — está suspensa. É tempo de se isolar, refletir, buscar o autoconhecimento, aproveitar o silêncio, ler mais, repensar escolhas, imaginar. Lave bem as mãos, não saia de casa, proteja seus pais e seus avós. Cuide-se para cuidar de todos. Cobre dos demais essa responsabilidade. Apesar dos pesares, podemos sair engrandecidos da pandemia, como seres humanos, como sociedade. Só depende de você.
Publicado em VEJA de 25 de março de 2020, edição nº 2679