Nesses meses de quarentena, tenho relido febrilmente os livros de Agatha Christie, um atrás do outro. Deixei na estante os clássicos rebuscados, os best-sellers do momento e alguns colegas brasileiros e redescobri o prazer de passar o domingo na rede na companhia de um bom mistério à moda antiga. Como muitos, mergulhei na obra da celebrada autora inglesa na adolescência. Devorei quase todas as aventuras do egocêntrico detetive belga Hercule Poirot, com suas “células cinzentas”, e da solteirona Miss Marple, que investiga os crimes na tranquila St. Mary Mead. Ainda hoje, para quem não tem o costume de ler, sempre indico o clássico O Caso dos Dez Negrinhos, agora intitulado E Não Sobrou Nenhum na tradução brasileira.
Em minha biblioteca, guardo várias edições de seus livros, inclusive a coleção completa de capa dura impecável da Altaya, publicada nos anos 1980, mas com traduções fracas, repletas de erros. Para a releitura, tenho optado pelas edições antigas da Record lançadas em versão pocket para bancas de jornal, fáceis de encontrar em sebos, ou pelas novíssimas edições da HarperCollins, com traduções de qualidade. Recentemente, reli Os Crimes ABC, um livro que, de início, parece uma história de serial killer para logo ganhar contornos do whodunit (quem matou) tradicional. Depois, A Maldição do Espelho, Cem Gramas de Centeio, Punição para a Inocência, Um Corpo na Biblioteca, Treze à Mesa e Assassinato no Expresso do Oriente, clássico que mereceu diversas adaptações ao cinema, inclusive uma recente com Kenneth Branagh fazendo um Poirot mais pop e fisicamente ativo.
“Por mais mirabolante que o crime seja, sabemos que nada dará errado. É um aconchego e tanto”
De todos, Treze à Mesa foi o mais grato resgate. É um livro por vezes ignorado pelos leitores, com uma trama tão banal que parece óbvia: o marido da atriz Jane Wilkinson é esfaqueado, e Jane foi vista por vários funcionários naquela noite, sendo então a única suspeita. Mas nada é tão simples, pois Jane estava em um jantar em outro lugar, com doze pessoas, naquela mesma noite.
Devorar um mistério de Agatha Christie é como reencontrar um bom amigo. Nos livros, os personagens são tipos de seu imaginário inglês: o coronel aposentado, o estrangeiro, a dama de companhia, a artista excêntrica, o velho milionário, os parentes interesseiros. Todos têm segredos e relações escusas. A violência é discreta, pouco descritiva, em geral apenas sugerida, e os cenários variam conforme a aventura: há crimes no trem, no barco, no avião, na praia, em uma ilha deserta, em uma república de estudantes, em casas vitorianas e em uma expedição à Mesopotâmia. Aliás, sempre achei curioso o “pé frio” de Poirot: mesmo quando viaja de férias, um assassinato acaba acontecendo onde ele está.
Revisitar um mistério de Agatha Christie é pura nostalgia. Tenho péssima memória, e isso ajuda. Não lembro a maioria dos finais e fico na expectativa quando Poirot reúne os suspeitos, repassa todos os acontecimentos e costura as pistas de modo engenhoso até chegar à solução. Por mais mirabolante que o crime seja, temos a segurança de que nada vai dar errado, e a normalidade será restabelecida, com a punição do criminoso. Em tempos tão incertos, é um aconchego e tanto.
Publicado em VEJA de 12 de agosto de 2020, edição nº 2699