Para onde vão as histórias?
Após vir ao mundo, obras não são mais dos autores, mas do leitor
Sem dúvida, uma das perguntas mais feitas a quem escreve é: de onde vêm suas histórias? Confesso que nunca soube a resposta. A mim, sempre interessou outra pergunta: para onde vão as histórias? A curiosidade começou aos 15 anos, quando passei a frequentar sebos. Deixando de lado os clássicos e os best-sellers, eu passava horas nas estantes em busca de romances de autores pouco conhecidos, de quem nunca havia ouvido falar. Naqueles anos, o processo de garimpo me trouxe boas surpresas. Histórias têm a força de vencer o tempo. Enquanto devorava os livros na madrugada, pensava: “Caramba, o sujeito foi médico e escreveu esse único romance em 1940, e agora eu estou aqui, lendo”.
Quando comecei a publicar meus romances, o processo se inverteu. A primeira vez ocorreu no metrô. Eu estava a caminho do escritório de advocacia onde estagiava quando avistei uma moça lendo meu livro de estreia, Suicidas. Aproximei-me do banco onde ela estava sentada e, em silêncio, observei-a ler. Fiquei intrigado: ela não era nenhuma amiga ou filha de amigos, seu rosto não era familiar, era uma completa desconhecida. Como, entre tantos livros no mundo, ela havia escolhido o meu para ler? E por quê? Não tive coragem de abordá-la. Fazer isso seria romper uma espécie de ritual sagrado. Ela foi-se embora no mar de gente na estação Cinelândia, com meu livro debaixo do braço. Eu me corrijo: com o livro dela debaixo do braço. Depois de escritas, as histórias não são mais de quem escreve, mas de quem lê.
“Muito além de entreter, elas têm o potencial de provocar, de cutucar feridas, de fazer pensar”
Ao contrário do ofício do ator e do músico, o trabalho do escritor se dá em dois tempos: o momento da escrita, quando estamos sozinhos com nossos personagens, ideias e angústias, e o momento em que as histórias chegam ao leitor e se completam, fechando um ciclo. Com os livros seguintes, passei a receber mensagens bem mais distantes e inesperadas. E me impressionei ao perceber como, de algum modo, as histórias influenciavam ou se costuravam na vida dos leitores. Dias Perfeitos, por exemplo, foi adotado em escolas. Com frequência, ao final das minhas palestras, eu era abordado por alunas dizendo que o livro as havia ajudado a perceber que viviam em relacionamentos abusivos. Aquilo me transformou. Foi só aí que entendi que, muito além de entreter, as histórias têm o potencial de provocar, de cutucar feridas, de fazer pensar e de levantar alertas.
A sede de diálogo me levou a escrever roteiros. O cinema e a TV comunicam de forma mais potente e direta, através da imagem. Comecei a escrever na Globo e logo quis colaborar em novelas, que têm a força de alcançar muitos e ainda discutir temas importantes, como alcoolismo, clonagem e o drama dos refugiados. Assim, quando, em 2017, a Netflix me convidou para criar uma série de suspense, não hesitei. Era a chance de levar minhas histórias a mais e mais pessoas, em 190 países.
Depois de três anos de trabalho com uma equipe incrível, a série Bom Dia, Verônica acaba de chegar à Netflix. É um thriller de suspense investigativo, mas vai muito além: discute burocracia policial, golpes na internet e violência doméstica. É tudo novo para mim, um grande passo no desejo de contar histórias e comunicar a um público mais amplo. Mal posso esperar para saber para quem Bom Dia, Verônica vai chegar…
Publicado em VEJA de 7 de outubro de 2020, edição nº 2707