A morte de Chorão, a condescendência com as drogas, a cultura da morte e a coragem de uma mulher
Eu sempre fico muito encantado — aquele encantamento da estupefação — com esses grupos ditos “progressistas” que se querem donos de novas verdades reveladas. Sabe-se lá reveladas por quem… De qualquer modo, estão por aí, com aquele ar de quem “viu a coisa”. Desculpo-me pela brutal ignorância, mesmo! Fico quase envergonhado. Mas eu não sabia […]
Eu sempre fico muito encantado — aquele encantamento da estupefação — com esses grupos ditos “progressistas” que se querem donos de novas verdades reveladas. Sabe-se lá reveladas por quem… De qualquer modo, estão por aí, com aquele ar de quem “viu a coisa”.
Desculpo-me pela brutal ignorância, mesmo! Fico quase envergonhado. Mas eu não sabia da existência de um senhor chamado “Chorão”, um artista, até onde entendi, do rap (ou coisa assim; não me peçam dados, digamos técnicos). Quando ele morreu, também fiquei sabendo que havia um grupo chamado “Charlie Brown Jr.”. Não os estou tratando com menoscabo, não! Tampouco estou me apresentando aqui como um ser refinado, capaz de fazer digressões sobre as particularidades de Rachmaninoff… Ainda que possa, isso também não quer dizer nada. Já de música caipira, de viola, dessa eu até que entendo um pouquinho e falo com alguma desenvoltura. Dia desses ainda convido o professor Marco Antonio Villa para escrevermos a quatro mãos a “economia política da música caipira”. A ocupação do norte do Paraná e de parte do Centro-Oeste por paulistas, a migração de mineiros para São Paulo, tudo isso está reportado nesse gênero. Uma de suas derivações — teratológica talvez — é esse sertanejo universitário, ou coisa assim, que mobiliza multidões mesmo nas cidades. O Brasil que progride é virtuosamente caipira… Mas já derivei, já me distraí, já me perdi em digressões.
Volto ao ponto. Eu nunca tinha ouvido falar de Chorão, sinal da minha ignorância e paspalhice e da minha inatualidade. A comoção gerada em alguns círculos por sua morte chamou a minha atenção. E agora vem o motivo deste post.
Analisando o tom das reportagens, de alguns testemunhos e de algumas homenagens, fiquei com a impressão de que Chorão morreu porque tinha um grande coração, porque tinha uma grande alma, porque era talentoso demais, porque estreitava no peito mais humanidades do que Cristo, como diria Fernando Pessoa. Alguém, em algum momento, lamentou, então, que tantas virtudes tivessem se perdido por causa das drogas? Não!
Ao contrário até: uma análise dos signos postos para circular com o objetivo de exaltar os seus ditos múltiplos talentos fazem, indiretamente, a apologia dessa suposta visão alternativa de mundo, que não se encaixaria, sei lá como chamar, na ordem burguesa. De algum modo, parece que Chorão morreu porque o mundo não o compreendeu, não lhe pagou devidamente por seu grande coração. Até que veio a público o testemunho de sua mulher.
Graziela Gonçalves é o nome desta brasileira corajosa. Não! Chorão não morreu porque era talentoso demais, ainda que fosse. Não morreu porque tinha uma grande alma, ainda que a tivesse. Não morreu porque era dotado de múltiplos talentos, que fosse. Morreu mesmo por causa da cocaína, das drogas. Drogas que, ela deixou claro, ele não tinha dificuldade nenhuma de conseguir. Ficou no ar a suspeita, é evidente, de que estava preso numa espécie de círculo, em que a dita-cuja era coisa corriqueira.
“Ah, mas o testemunho dela foi ao ar, Reinaldo, e na imprensa!” É verdade. Porque ela teve a coragem de dar a cara ao tapa. Não fosse isso, a morte deste senhor, que era ídolo de gente muito mais jovem, segundo entendi, passaria como mais um caso de martírio do herói. E não! Definitivamente, ainda que Chorão fosse o Schopenhauer do rap (não sei se era porque desconheço e não falarei a respeito), ele não é mártir de nada. Ele foi vítima de sua própria concepção equivocada de mundo e de suas escolhas comprovadamente erradas.
Em certa medida, todo homem é também vítima de si mesmo: eu, você que me lê, todo mundo. Apenas repudio essa cortina de silêncio sobre a causa da morte e a óbvia distorção em curso. Se tivesse morrido, sei lá, de câncer, emprestar-lhe-iam certamente um tom menos épico — ou menos dramático, a depender do caso.
O tratamento jornalístico dispensado ao caso é uma das muitas inversões morais em curso no nosso tempo. Que fique o testemunho de Graziela que vi no Fantástico. Ela tentou de tudo. Perdeu o marido para o vício, mas o perdeu também para uma das faces mais escuras da cultura da morte: a tolerância dos supostamente progressistas com as drogas.