Escrevi ontem alguns posts (às 16h10, 18h58, 20h, 20h55 e 21h55) sobre um texto escrito por um tal Flávio Moura, editor da Companhia das Letras, no jornal Valor Econômico. Ele decidiu decretar a morte de um grupo de jornalistas e articulistas que teriam sido, ele afirma com visível satisfação, vencidos pelas supostas conquistas sociais do petismo. Sugere que formávamos uma espécie de frente antipatriótica para resistir ao PT, mas que a qualidade do governo dos companheiros nos nocauteou. Ao se referir ao destino de cada um dos que ele decidiu fuzilar (além de mim, Diogo Mainardi, Mario Sabino, João Pereira Coutinho e Luiz Felipe Pondé), mistura opinião banal com informação errada, vai metendo os pés pelas mãos, sugerindo, contra os fatos, que essa turma quebrou a cara. Sei menos de Pondé e Coutinho, que me parecem muito bem. Meu blog e meus livros nunca tiveram tantos leitores; Diogo escreveu um livro sem rivais em muitas décadas e em vários idiomas, e Mario está sendo martirizado em Paris… “Mas o grupo se dissolveu”, esganiça Flavinho. Que grupo? Nunca houve um grupo! Não emulamos as comunidades petralhas. Neste texto, quero abordar um outro aspecto desse tema. Como é que se chega a esse ponto? Como é que um “editor de livros” e “doutor em sociologia”, segundo seu pé biográfico, chega a se sentir à vontade para decretar a morte das pessoas de quem discorda? Já demonstrei no post das 18h58 como esse espírito persecutório se casa com a era da “infraestrutura & negócios”. Mas também isso é consequência de algo maior, de natureza institucional.
Cumpre apelar aqui um pouco à memória. Tenho sido, ao longo do tempo, menos esperto do que alguns contemporâneos. Fui um crítico bastante severo do governo FHC, embora seu principal adversário, o PT, não me agradasse. Mas, como editor de site e revista, preferia, mesmo quando atuei no extinto jornalismo cultural, voltar a minha pontaria contra o governo. Gosto da ideia — na verdade, este talvez seja um dos pilares do meu pensamento — de que governos são necessários, mas que nossa tarefa é vigiá-los, criticá-los. Quando o PT chegou ao poder, continuei na oposição. Os mais espertos do que eu ganhavam dinheiro sendo governistas no tucanato e continuaram a ganhar dinheiro sendo governistas no petismo. Mesmo na era da Internet, que facilita a pesquisa, a coerência não tem sido a característica mais visível da profissão. É evidente que as pessoas podem mudar de ideia ao longo dos anos se chegam à conclusão de que estavam erradas. Mas desconfio de quem conclui que estive errado sempre em consonância com o governo de turno. Será que um dia vou concluir que o PT era bom? Quem sabe quando — e se — o partido voltar a ser oposição…
Na verdade, antes como agora, não me pergunto se o que penso é contra o governo ou a favor dele. Penso o que penso. Às vezes, coincide com a política oficial; frequentemente, não. De toda sorte, textos como o de Flávio Moura seriam impensáveis na imprensa brasileira de há 10, 15, 20 ou mesmo 30 anos. O começo da década de 1980, diga-se, estava fortemente pautado pela chamada abertura, a ditadura estava moribunda, e muitos militantes estudantis tinham ido parar nas redações de jornal. Vivia-se até uma certa algazarra libertária. Isso acabou.
O que antes era alternativa agora é poder. O que antes se calava pela força bruta agora se busca silenciar por intermédio do falso consenso. Enquanto estiveram na oposição — até dezembro de 2002 —, as esquerdas seguiram o que é, de fato, seu padrão histórico: usaram a causa da liberdade de imprensa e de crítica a seu favor. Ocorre, e isto também é de sua natureza (e foi uma das causas de eu ter passado a repudiá-las), que não se veem como um pensamento possível entre outros. Ao contrário: os “companheiros” de hoje não abandonaram a tara dos “camaradas” de ontem e se entendem como uma etapa posterior e superior da civilização. Não é por acaso que Flávio Moura define o pensamento de Luiz Felipe Pondé como “teologia à moda antiga”. Devemos concluir que há uma “teologia à moda moderna”. As esquerdas, mesmo na sua expressão mais grotesca, caricatural e primitiva, como é o tal Moura, continuam partidárias do fim da história — que é uma tese hegeliana, não do Fukuyama, como sugeriu outro dia no Jornal da Globo o Arnaldo Jabor. Vencidos, então, os adversários, aí se trataria de cuidar das pendengas lá deles, das contradições existentes num lado só. Não passa pela cabeça dessa gente, acreditem, perder eleições porque isso significaria um retrocesso, uma volta ao período em que ainda havia história…
Textos como o de Moura não seriam publicados há 10, 20 ou mesmo 30 anos porque as forças capazes de fazer esse juízo ainda não estavam no poder e não eram donas do novo consenso. Ao contrário. Era necessário fingir-se de plural para chegar ao que diziam ser o “horizonte socialista”. Os que defendíamos a diversidade de pensamento éramos obviamente úteis àqueles que tinham nessa diversidade apenas uma etapa da conquista do estado. Em outros tempos, as revoluções devoravam seus filhos de maneira cruenta, como o Saturno no quadro de Goya. Nos novos tempos, busca-se desqualificar a divergência e provar a sua obsolescência. Em qualquer dos casos, antes e agora, os altos interesses do povo e as conquistas sociais servem de maquiagem para a eliminação do adversário. Um texto como o de Moura sai num jornal como o Valor porque também o Valor está interessado, como Deng Xiaoping, em gatos que cacem ratos, pouco importando a sua cor.
Se, nessas décadas passadas, alguém se atrevesse a pedir o banimento de um pensamento considerado divergente, haveria, por certo, protestos. O texto nem seria publicado. A direita liberal jamais o faria porque, de fato, não é de sua natureza — muito pelo contrário; e as esquerdas, mesmo as autoritárias, não eram tolas de entregar o serviço. Já demonstrei aqui que a “anistia ampla, geral e irrestrita”, por exemplo, era uma reivindicação delas (à época, posso dizer “nossa”). É também delas a reivindicação de hoje para rever a Lei da Anistia. Antes, a causa servia à proteção de seus assassinos. Agora que estão a salvo, querem dar um jeito de pegar os assassinos “do outro lado”. Por quê? Porque um esquerdista sempre acha que mata por bons propósitos. Leiam, continua atualíssimo, recomendo de novo, “O Zero e o Infinito”, de Arthur Koestler, que foi, vamos dizer assim, bem mais esquerdista do que eu na juventude.
A questão política
E há, claro, a questão política propriamente. Mesmo quando minoritárias no Parlamento, as esquerdas sempre foram, do processo de redemocratização a esta data, muito mobilizadas, contando, antes como agora, com forte apoio da imprensa. Em muitos aspectos, já tratei do assunto aqui, foi o jornalismo que inventou Lula — antes até que ele inventasse a si mesmo. Ao menor sinal de “retrocesso”, lá estavam os valentes a botar a boca no trombone.
Nestes tempos, esses jornalistas que Flávio Moura decidiu fuzilar — e há outros tantos que ele não citou, talvez por ignorância — acabaram sobressaindo, o que é um absurdo, como “a oposição” do Brasil pela simples, óbvia e até macabra razão de que não há oposição no Brasil — não como voz institucional e alternativa viável de poder federal. É claro que há valorosos parlamentares que se opõem ao governo. Reitero: refiro-me a uma força organizada e viável como alternativa de poder.
Moura segue a trilha aberta pelos blogs sujos e decide demonizar pessoas, mas o que está em pauta, de fato, é a imprensa independente, aquela que faz o seu trabalho e chama desmando de “desmando”, roubalheira de “roubalheira”. Como inexiste, então, a força organizada para obrigar o governo a se explicar, o que é próprio das democracias, o jornalismo que cumpre a tarefa de informar e o colunismo que não está alinhado com o poder acabam sendo tomados, lembrando o presidente do PT, Rui Falcão, como a “verdadeira oposição”, que não se manifesta como partido. Eu duvido que o tal Moura seja um interlocutor de Falcão. Eu duvido que o rapaz obedeça diretamente às ordens desse ou daquele. Os dois falam a mesma coisa porque o que os une não é uma relação de hierarquia, mas o espírito de um tempo. O que Moura tentou fazer é demonstrar que estamos sozinhos na crítica, que aquela abordagem, com aqueles valores, perdeu sentido porque vencida pela história. Como, com efeito, expressamos pontos de vista que não se ouvem nem no governismo nem na oposição, então fica fácil apontar o dedo e gritar, como a Rainha de Copas: “Cortem-lhes a cabeça!”.
Não estou pedindo nem apoio nem penico para as oposições. Em primeiro lugar, porque, de fato, isso não é necessário. Em segundo lugar, porque seria inútil. A imprensa independente e os cabras marcados por Moura para morrer jamais poderão fazer pelas oposições o que os blogs sujos fazem pelo petismo. Nesse caso, uns entendem de comprar, e o outros entendem de vender. Deste outro lado, não sei se haveria gente disposta a comprar; o que sei é que NÃO há gente disposta a vender. Até por uma questão de lógica elementar. Se for para “entregar a mercadoria” no balcão do “jornalismo & negócios”, mister é fazer a transação com o poder, que certamente pode pagar mais, não é mesmo? Entre ser mercenário em favor do vitorioso e sê-lo em favor dos derrotados, as duas opções são igualmente imorais, mas uma é mais estúpida do que a outra. Convenham: ninguém é crítico de governos por pragmatismo.
Finalmente
Eu não tenho a ambição de que Moura me leia. As considerações ligeiras e idiotas que faz a meu respeito, diga-se, provam que não me lê. Segundo escreve, “Azevedo assumiu a linha de frente da indignação moral com a corrupção”. Não que a corrupção, com efeito, não me indigne — sim, e muito! —, mas os milhares de leitores desta página sabem que esse nem é o tema mais frequente dos meus textos. Os posts que tratam de ilegalidades cometidas por políticos, no mais das vezes, fazem parte do clipping do noticiário.
As 800 e poucas páginas de “O País dos Petralhas I e II” debatem outros temas. Se Moura tivesse dito que assumi a linha de frente do debate — ou do embate — ideológico, aí estaria falando a verdade. O segundo volume do livro, por exemplo, passa longe da roubalheira, petista ou não. Ele tem todo o direito de não ler o meu blog e os meus livros, mas tem o compromisso de falar a verdade para aqueles que eventualmente o leem. Ocorre que esse espírito persecutório parece ser também preguiçoso. Ouviu dizer isso a meu respeito por aí e repete sem ao menos verificar se essa opinião coincide com os fatos. Eu não me importaria nem um pouco em ser uma espécie de archote da “indignação moral com a corrupção”, só que o meu trabalho e o meu texto têm outro objeto.
Eu não acho que um dia o Brasil ficará livre dos Mouras como ele crê que possa ficar livre dos Reinaldos. Aliás, espero que não ocorra nem uma coisa nem outra. O paraíso dos iguais pelo qual ele parece ansiar seria, pra mim, a experiência viva do inferno. A única razão de ser de um embate intelectual é a existência do adversário. A minha ética, se posso chamar assim, é a de uma guerra sem vencidos. “Ah, mas, então, o mundo não sai do lugar.” Sai, sim. É que o jogo não tem fim. Eles é que querem sair babando a sua vitória, saqueando e incendiando casas, violando as virgens, sacrificando as crianças. Para quê? Para que possam gritar: “Venceeemos!”. E depois? Tudo saindo conforme o esperado — não sairá —, começariam a se matar em seguida. Os Mouras seriam os primeiros da fila. No mundo pelo qual ele luta, não há lugar para editores de livros. Enquanto existirem os Reinaldos, os Diogos, os Sabinos, os Pondés e os Coutinhos, gente como Moura pode nos odiar, que estaremos a proteger o seu nobre pescocinho.
É isto: a “direita liberal”, no fim das contas, protege esses babacas de suas próprias utopias. Ou terminariam todos com uma picareta enfiada no crânio ou no paredão, para onde seriam enviados pelos próprios ex-companheiros. Enquanto eu existir, Flavinho VE, a minha cabeça sempre estará à frente da sua na lista de prioridades do regime. Entendeu ou agora quer que o Tio Rei desenhe?