Há mais caroço num angu que engrossa, neste momento, no ABC do que sugere a luta por liberdade de imprensa. Explico-me. A Justiça proibiu o jornal Diário do Grande ABC, que tem sede em Santo André (o “A” da sigla), de publicar uma reportagem que acusa o prefeito de São Bernardo (o “B”), Luiz Marinho (PT), de promover o descarte de milhares de carteiras escolares — e sua suibstituição por novas, claro! — que estariam em plenas condições de uso.
Sabendo que a reportagem seria publicada — provavelmente porque o jornal o procurou para ouvir a sua versão —, o prefeito recorreu à Justiça, e o juiz Jairo Oliveira Junior, da 1ª Vara Cível de Santo André, deferiu liminar em favor do prefeito e determinou multa diária de R$ 500 caso o jornal publicasse o texto. O Diário recorreu da sentença.
Antes de mais nada, a questão geral: considero um caso clássico de censura prévia, e outra não é a opinião da ANJ (Associação Nacional de Jornais), que emitiu nota a respeito. Ouvido pelo Estadão, o juiz divulgou a seguinte mensagem, por escrito:
“Considerando que o autor da ação, amparado em prova documental, sustenta que a referida matéria jornalística sugere incomprovada vinculação dele a uma conduta ilícita ou inidônea, a lei confere à parte supostamente lesada outro direito, que é a já referida decisão provisória, para evitar, no curso do processo, o risco de danos de difícil reparação. E porque o papel do Judiciário justamente é revelar a verdade, isso, evidentemente, não será uma censura, qualificada como um ato destinado a esconder a verdade”.
Máxima vênia, meritíssimo, há dois problemas graves de concepção aí. Em primeiro lugar, nota-se que acabou sendo conferido ao prefeito o papel de verdadeiro juiz na questão — e Marinho, obviamente, decidiu em favor de Marinho. Em segundo lugar, e não menos importante, censura prévia é censura prévia, pouco importa se em relação a uma verdade ou a uma mentira. Sendo uma mentira, a Justiça dispõe de outros instrumentos para reparar o agravo. A ser assim, criar-se-iam comitês Brasil afora para decidir previamente o que seria ou não publicado — e tudo em nome da verdade. Toda ditadura acredita ser virtuosa.
E agora o que não está sendo noticiado
Assim, não resta dúvida de que considero a decisão, com os dados disponíveis até agora, uma exorbitância. Mas talvez seja preciso ir além da espuma nesse caso.
O Diário do Grande ABC pertence ao empresário Ronan Maria Pinto, historicamente ligado ao PT — em particular ao PT de Santo André. Fazia parte do círculo de amigos do prefeito assassinado Celso Daniel, integrado também por Miriam Belchior, que pertence ao núcleo duro do comando petista. Uma rápida pesquisa na Internet encontrará o nome de Ronan associado a um suposto esquema que existia em Santo André, denunciado pelo Ministério Público, ligado à extorsão de empresas de ônibus para fazer caixa de campanha. Ele era sócio, não sei se é ainda, de Sérgio Sombra, amigo pessoal de Daniel e acusado de ter tramado a sua morte.
Na edição 1927, de 19 de outubro de 2005, narrava reportagem da VEJA:
“Examinando o caso Celso Daniel com óculos de hoje, pode-se dizer que a cidade de Santo André foi a precursora do mensalão. Na tarde do dia 24 de janeiro de 2002, cinco dias depois do assassinato do prefeito, a empresária Rosângela Gabrilli, dona de uma empresa de ônibus em Santo André, procurou o Ministério Público para fazer uma denúncia grave. Segundo ela, os donos de companhias rodoviárias da cidade eram obrigados a contribuir para uma caixinha do PT. O valor do mensalão seria proporcional à quantidade de ônibus que cada empresário possuía, à razão de 550 reais por veículo. A própria Rosângela, dona da Expresso Guarará, pagava 40.000 reais todos os meses. A empresária apontou três responsáveis pelo esquema de cobrança. Sérgio Gomes da Silva, o “Sombra”, melhor amigo do prefeito. Klinger Luiz de Oliveira Sousa, ex-secretário de Serviços Municipais de Santo André. E Ronan Maria Pinto, sócio de Sérgio em três empresas, ele próprio um dos maiores concessionários do setor de transporte público na cidade. Em plena efervescência da campanha eleitoral, a denúncia foi desqualificada por vários petistas, que viram na atitude de Rosângela indícios de manobra eleitoreira. Mesmo assim, abriu-se uma CPI em Santo André e o Ministério Público foi chamado a investigar o caso.”
PT contra PT?
Luiz Marinho também não é um qualquer no partido. Ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, chefão da CUT, ex-ministro do Trabalho, é próximo de Lula. Sua eleição em São Bernardo era considerada questão de honra para o PT e para o presidente. Mesmo sem televisão, foi a mais cara do país.
Nada disso muda, reitero, o que entendo ser censura prévia no caso da reportagem do jornal de Ronan Maria Pinto. Mas acho que é preciso ir um pouco além da bruma. Política e negócios se misturam no petismo sem muita cerimônia. Essa gente toda está brigando por algum motivo.
PS: Sejam moderados nos comentários, sim?