1964 e um erro histórico de Lula
Para não desagradar os militares, o presidente evita o assunto sobre o qual mais precisamos falar.
“Eu estou mais preocupado com o golpe de 8 de janeiro de 2023 do que com 64. (…) Eu não vou ficar remoendo e eu vou tentar tocar esse país para frente”, disse Lula. E proibiu em seu governo qualquer menção ao golpe de 1964.
Faz 60 anos exatos que o governo de João Goulart foi interrompido.
O governo havia sido eleito democraticamente, não era comunista e tinha apoio popular. Mas era um governo caótico e, ainda que não houvesse perigo real de comunismo, havia medo do comunismo. A derrubada de Jango foi apoiada por muita gente, incluindo a totalidade das Forças Armadas, a grande imprensa, a classe média urbana em peso e boa parte dos liberais.
Muitos mitos foram criados para justificar a intervenção.
“Foi uma revolução”. Nasceu dentro do Estado, foi desfechada pelo conjunto das Forças Armadas com apoio de setores do Congresso, não teve o apoio do conjunto da sociedade nem povo na rua, não fez mudanças estruturais. Claro que foi golpe.
“O movimento salvou a democracia”. “A história não se apaga e nem se reescreve, em 31 de março de 1964 a Nação se salvou a si mesma!”, escreveu no domingo o general Hamilton Mourão, numa tentativa de apagar e reescrever a história. O que a história (escrita e indelével) mostra é que o golpe militar matou a democracia.
“Não foi ditadura”. Não havia eleições, o presidente era um general escolhido por outros generais. O governo perseguia, torturava, exilava e matava seus adversários. Havia censura prévia à imprensa e às artes. O presidente legislava por decreto e o Congresso só podia aprovar leis que o governo aprovasse. Greves eram proibidas. Claro que foi ditadura.
“A economia ia bem”. O “milagre brasileiro” dos anos 1970, com suas obras farônicas, foi financiado por endividamento irresponsável e arrocho salarial. A ditadura chegou ao fim com inflação anual de 250% e salário mínimo valendo a metade.
“Só os comunistas foram prejudicados”. Ideia duplamente estranha. Primeiro, porque (leia acima) é obviamente falsa. Segundo, porque sugere que é legítimo torturar e matar comunistas.
“Não havia corrupção”. Só se for nos jornais, que eram censurados. Mas quando a censura foi suspensa, começaram a surgir os (muitos) escândalos.
Essas mentiras não são novas, mas, desde o fim da ditadura, nunca se acreditou tanto nelas.
Lula não se incomoda de falar do passado quando é para comparar Israel com Hitler, mas proíbe que se fale de um passado mais próximo e mais recente — e mais vivo do que nunca.
Lula quer “tocar o país para frente” sem olhar o que ficou para trás. Só que 1964 não ficou para trás: o 31 de março e o 8 de janeiro são a mesma coisa, feita pelo mesmo grupo, pelos mesmos motivos e com os mesmos objetivos.
“O passado nunca morre. Não é sequer passado”, ensinou o escritor americano William Faulkner.
Precisamos falar de 1964 pelo mesmo motivo que precisamos falar do Holocausto: para garantir que não aconteçerá de novo. Para garantir que haverá futuro.
Oito (infelizmente não foram mais) ministros de Estado falaram do golpe militar.
Lula proibiu menção ao assunto e ficou calado.
Perdeu uma oportunidade histórica.
(Por Ricardo Rangel em 01/04/2024)