De acordo com o que disse Bolsonaro em seu último pronunciamento, o 7 de setembro de 1822 foi um momento heroico glorioso de nossa história. Nosso país é tolerante e solidário, não é desigual ou violento, não oprime negros, mulheres, homossexuais, índios. O golpe de 1964 nos salvou do comunismo e preservou a democracia.
A mitificação vista no pronunciamento é a tônica do governo. A proposta de reforma administrativa, tão decantada, é mal detalhada, poupa os funcionários mais privilegiados, não vale para quem já está no serviço público — enfim, vazia e não corta um tostão. A proposta de Orçamento, que deixa de fora o Renda Brasil e o Pró-Brasil, é uma peça de ficção. E esses projetos, criados para obter ganhos eleitorais, são mal concebidos e mal-ajambrados.
Guedes prometeu privatizar 200 estatais e arrecadar 1 trilhão de reais em um ano. Estamos no 21º mês de governo, e ainda não se privatizou um alfinete. No início de julho, o ministro anunciou que privatizaria quatro grandes estatais nos “trinta, sessenta, noventa dias” seguintes. Passaram-se noventa dias, e a única coisa privatizada foi o secretário da Desestatização, Salim Mattar, que voltou à iniciativa privada (atribuindo sua saída à “lentidão do Estado” e não à própria incompetência ou ao desinteresse do presidente que ainda hoje bajula).
“É melhor Bolsonaro começar a fazer alguma coisa, porque há um trem vindo em nossa direção”
O governo fala de reforma tributária desde sempre, mas o que apresentou foi uma pífia unificação de PIS/Cofins, ignorando as duas propostas que estão no Congresso, muito mais completas. E, depois de falar sem parar em CPMF, nada apresentou a respeito (o que não deixa de ser boa notícia, mas isso é outro assunto). Até a reforma da Previdência (que, a rigor, nem se deve tanto ao governo), que não se pode acusar de falta de substância, quase foi inviabilizada pela insistência de Guedes em um modelo de capitalização vago e sem detalhamento.
Na Saúde, Bolsonaro fez de conta que a Covid-19 é uma gripezinha, induziu a população a um comportamento de risco que aumentou o número de mortes. Recomendou o uso de um medicamento que a ciência já descartou. Tentou manipular dados para dar a impressão de que a pandemia não é tão ruim.
Enquanto o ministro da Saúde mente que vai começar a vacinar em janeiro, o presidente vai na direção contrária, afirmando que “você não pode amarrar o cara e dar vacina”. Pura demagogia, não só porque, até agora, ninguém defendeu vacinação compulsória — muito menos à força —, mas porque o próprio presidente já sancionou lei permitindo a obrigatoriedade. (Sem falar que Bolsonaro já justificou, muitas vezes, a prática de “amarrar o cara” quando era para torturar.)
Como as pesquisas de popularidade demonstram, a empulhação é eficaz, engana muitos e rende votos, mas a dura realidade é que estamos a um passo do descontrole fiscal. É melhor Bolsonaro deixar de lero-lero e começar a fazer alguma coisa, porque há um trem vindo em nossa direção, e, como disse Lincoln, “Pode-se enganar a todos por algum tempo; pode-se enganar alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar a todos por todo o tempo”. E ainda faltam dois anos até a eleição.
Publicado em VEJA de 16 de setembro de 2020, edição nº 2704