Um comercial de cerveja recém-veiculado apresenta, de ponta a ponta, sem nenhuma explicação, a expressão “Lei da Pureza Alemã”. Muita gente viu uma alusão à lei de pureza racial nazista que levou 6 milhões de judeus à morte. Fãs de cerveja, raivosos, vociferaram que o comercial se refere à lei bávara da cerveja, de 1516. Mas o comercial não menciona a tal lei, da qual pessoas comuns nunca ouviram falar. Já a lei nazista todo mundo conhece. (É irônico que a primeira tentativa de golpe por Hitler tenha sido em uma cervejaria da Baviera.)
Filipe Martins, então assessor internacional do presidente, fez um gesto supremacista branco no Senado. Chamou os críticos de “mentes doentias”. Pouco depois, viralizou nas redes um vídeo em que um segurança de Bolsonaro faz o gesto e o presidente o admoesta: “É um gesto bacana, mas pega mal para mim”.
No ano passado, o economista Rodrigo Constantino, ecoando um argumento muito repetido, escreveu que “se o sujeito tinha câncer, hipertensão, diabetes, HIV e 80 anos, ele não morreu de coronavírus; esta foi apenas a pá de cal de alguém que estava com o pé na cova” (ou seja, se o sujeito é doente e idoso, tanto faz morrer aos 80 ou aos 90). Chamou as críticas de “histeria esquerdista”.
Recentemente, a deputada Janaína Paschoal (quase vice de Bolsonaro) propôs a criação de “regras” para priorizar atendimento para os mais jovens — evidentemente, em caso de colapso, o critério é a chance de sobreviver, não a idade, e quem decide é o médico, não os políticos. Reclamou que suas palavras foram “torcidas” por pessoas “mal-intencionadas”, mas não esclareceu qual seria a interpretação correta para o que disse.
“Há muita gente no governo e no Congresso que não é maligna, mas que participa de um projeto de destruição do país”
A apresentadora Xuxa Meneghel defendeu a utilização de presidiários como cobaias para pesquisas na busca de uma cura para a Covid-19. Soou sincera ao reconhecer o erro e pedir desculpas por “não ter usado as palavras certas”.
No ano passado, o então secretário da Cultura, Roberto Alvim, copiou um discurso do nazista Joseph Goebbels. Chamou os críticos de “corja de esquerda” e os acusou de tentarem desacreditar um prêmio que pretendia criar. Este mês apareceu uma bandeira do Integralismo, o movimento fascista brasileiro dos anos 30, em uma manifestação bolsonarista. E nunca se viu tanta manifestação antissemita nas redes quanto se vê hoje.
Esses casos e muitos outros compõem o zeitgeist, o “espírito do tempo”, isto é, o clima intelectual, social, cultural, político de uma certa época em determinado lugar. É o que determina o que é aceitável ou não. Em outros tempos, ninguém faria alusão nazista ou sugestão de que idosos, doentes ou presidiários são descartáveis, mas hoje muita gente faz e nem sempre se dá conta.
A filósofa Hannah Arendt chamou de “banalidade do mal” o fato de pessoas comuns, não malignas, serem capazes de contribuir ativamente para o mal. Há muita gente no governo e no Congresso que não é maligna, mas que participa de um projeto de destruição do país. E há milhões de cidadãos que apoiam um presidente que cultua a violência e a morte.
Nosso zeitgeist é de destruição e morte. Ele não mudará enquanto Jair Bolsonaro for o presidente.
Publicado em VEJA de 21 de abril de 2021, edição nº 2734