Na sala escura, usando óculos para filmes em 3D, as crianças tentavam tocar com as mãos as projeções que saltavam da tela durante a exibição do filme Pantera Negra, o super-herói negro da Marvel. “Foi uma gritaria de emoção, elas queriam tocar as imagens”, relembra Vitória Sant’Anna Silva, de 22 anos, moradora de Porto Alegre, sobre a sessão das 16h em 27 de fevereiro. Vitória mobilizou voluntários, alugou cinco ônibus e arrecadou doações de todo o Brasil para comprar os ingressos para 210 crianças de cinco comunidades da capital gaúcha.
Para a maioria daquelas crianças, era a primeira vez em um cinema. Para outras tantas, um dos raros passeios em um shopping. Mas, para todas, foi emocionante assistir a um super-herói negro na telona. “O impacto na autoestima das crianças é muito positivo. As crianças negras, quando iniciam a vida escolar, têm crise de identidade ao ver os desenhos animados sem negros. A mãe de uma menina me perguntou sobre o que fazer com a filha, de cinco anos, que odeia sua cor e seu cabelo. O filme faz com que eles se enxerguem de forma positiva”, explica Vitória.
Vitória é moradora do condomínio popular Princesa Isabel, que leva o nome da imperatriz que aboliu a escravidão no Brasil em 1888. Dezenas de crianças em vulnerabilidade social que foram ao cinema também moram no local. As demais foram selecionadas com ajuda de amigas e voluntários de outras quatro comunidades.
Em menos de dez dias, a garota montou um esquema de identificação das crianças com etiqueta na roupa, autorização dos pais e conseguiu gratuitamente para cada uma delas o combo de pipoca e refrigerante da rede de cinemas GNC, conhecida entre os gaúchos.
“Não foi uma atitude que surgiu do nada. Venho de um ambiente muito comunitário. Penso sempre em atividades para as crianças, já organizei time de futebol e passei filme com projetor emprestado. Quando assisti Pantera Negra, saí com esse sentimento de que as crianças precisavam ver. Já na saída da sessão, postei no Facebook sobre a ideia. Inicialmente, pensei em 30 crianças, mas a mobilização cresceu muito”, contou a estudante de pedagogia a VEJA.
Vitória conta que chegou a ter seu perfil bloqueado pelo Facebook por denúncias de usuários da rede social que alegavam que a campanha, por priorizar as crianças negras, era racista. Segundo ela, o escritório do Facebook chegou a entrar em contato pedindo desculpas pelo erro. Mesmo com o bloqueio, a campanha não perdeu fôlego e conseguiu crescer até alcançar 210 crianças, sete vezes mais que o primeiro plano. “A sociedade é tão racista que, quando a gente fala a palavra negro, choca”, opina a jovem.
As crianças menores, de sete a nove anos, ficaram empolgadas com cada detalhe: o passeio de ônibus, a fila para retirar pipoca, os óculos 3D e o escuro da sala. Os maiores, de até 14 anos, foram os que mais entenderam o peso de um super-herói negro em um filme, explica Vitória.
A universitária conta que a maior inspiração foi sua mãe, que é conselheira tutelar Maria Lúcia Sant’Anna, de 57 anos . Em 1994, sua mãe levou dezenas de crianças da comunidade onde moravam na época ao cinema para assistir ao Rei Leão, clássico da Disney. “Eu vi a minha mãe fazer isso. Então, estou dando continuidade”, disse.