O Datafolha aferiu que 75% dos brasileiros aprovam a democracia, um recorde desde a primeira sondagem a respeito, em 1989. Excelente notícia, mas seria melhor se o conceito de democracia fosse unívoco, e melhor ainda se o presidente da República não fosse a principal voz a serviço de torná-lo equívoco, confundindo-o e invertendo-o a seu favor. É notável a insistência com que Jair Bolsonaro, nas últimas semanas, tem defendido a democracia e a Constituição. Mas quando exalta, por exemplo, a independência dos poderes, o que tem em mente é fazer o que bem entende, e que outros poderes não chateiem. E quando prega, como na posse do novo ministro das Comunicações, o respeito a “cada artigo da Constituição”, expõe uma tese em que cabe até a interpretação “terraplanista” (apud ministro Luís Roberto Barroso) de que o artigo 142 permite intervenção militar. Se fosse consultado pelo Datafolha, o presidente engrossaria sem dúvida o pelotão dos fãs da democracia.
A prisão de Fabrício Queiroz, fiel escudeiro e elo da família Bolsonaro com a milícia carioca, amenizou os temores de golpe. Os militares não comprometeriam a farda em defesa de interesses tão, digamos, particulares. Se o golpe de 1964 deu-se, segundo o enobrecimento que lhe costumam emprestar, “em defesa da democracia”, a reedição nos dias de hoje teria reles destino. Entraria na história como o golpe do socorro ao presidente que não podia “esperar f… sua família toda, de sacanagem” (cf. reunião ministerial de 22/4). Bolsonaro, de crista baixa, cancelou as provocações à porta do Alvorada, e até convocou um sanfoneiro (presidente da Embratur nas horas vagas), para estraçalhar uma Ave Maria de Gounod à guisa de homenagem aos antes esquecidos mortos da Covid-19. Não é hora de baixar a guarda, porém. Sabe-se, desde o livro Como as Democracias Morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, que golpes, hoje em dia, prescindem de desfiles de tanques e assaltos a palácios. Elaboram-se às sorrelfas e aos pouquinhos. “É como se as luzes de um edifício fossem sendo apagadas gradativamente”, escreveu Fernando Gabeira em O Globo, num artigo na mesma linha deste.
“Em vários órgãos federais já temos um golpe em andamento”
Dobrar os outros poderes não está no horizonte, mas quem sabe, com labor e paciência, não se consiga anulá-los, mesmo destruí-los? Ao cultivar o Centrão, Bolsonaro atrai o Congresso. Por enquanto as intenções são defensivas, evitar o impeachment em primeiro lugar. Mas e se, com esforços redobrados, se obtenha não só um Congresso domado, como o impedimento de um ou dois ministros do Supremo? Ou, então, uma emenda constitucional que aumente para quinze o número de integrantes da Corte, como fez a ditadura? Tais manobras, no rastro da cartilha venezuelana, não passam por enquanto de longínquas especulações, mas se incluirmos no conceito de democracia o de avanço civilizacional, já temos um golpe em andamento. Ocorre no Ibama, no Inpe, no Iphan, na Fundação Palmares, na Fundação Casa de Rui Barbosa, na Cinemateca e em outros órgãos. Nem foi preciso fechá-los, como faria um golpe convencional. Alguns sem comando, outros pilotados como que por comandantes ébrios tiveram os lemes embicados contra suas próprias razões de ser.
O avanço civilizacional marcou as três primeiras décadas da redemocratização. No período, o Brasil despertou para a preservação do meio ambiente e para a consciência da opressão contra camadas da população. Descobriu-se que o país possuía maioria afrodescendente e era eivado de desigualdades extremas. Não que os problemas fossem resolvidos, mas deixá-los aflorar e mapeá-los foi uma conquista. Na eleição de 2018, eleito Bolsonaro, sob o impacto dos escândalos de corrupção e ao impulso da negação de “tudo o que está aí”, jogou-se o bebê com a água do banho. Mesmo o que hoje ocorre no Ministério da Educação e no antigo Ministério da Cultura (hoje rebaixado a penduricalho do Ministério do Turismo!) pode ser incluído no golpe anticivilização. Pelo Ministério da Educação passou um titular que escrevia “imprecionante” e tratava Kafka por Kafta, confundindo escritor checo com espetinho árabe; pela Secretaria da Cultura, um tipo que, numa apresentação, plagiou Goebbels e caprichou na estética nazista. As luzes apagadas aqui e ali chamam atenção num primeiro momento mas logo a vida segue; não provocam o estrondo de um choque de poderes. Configuram uma estratégia de pequenos e pontuais assassinatos, seguidos, porque pequenos e pontuais, de rápido esquecimento. E assim vai, até que, de repente, acorda-se numa ditadura.
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Publicado em VEJA de 8 de julho de 2020, edição nº 2694