A retomada hoje, 21, do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, que pode alterar a punição ao porte de drogas para uso pessoal deve abrir um novo capítulo no tratamento do tema no Brasil. O país tem adiado em demasia o debate sobre quais critérios objetivos podem ser usados para distinguir usuários de traficantes. Essa distinção tem efeito direto tanto para a saúde pública quanto para a redução da violência. Quem achar que é coisa da “turma de direitos humanos” ou de apologistas das drogas está ultrapassado, ou se deixa dominar pelo conservadorismo moral, ou precisa se informar melhor. Ou as três coisas.
Diversos países nas Américas — como EUA, Uruguai, Colômbia, México e Canadá — estão fazendo mudanças em suas políticas de drogas, adotando regras para usos medicinais, descriminalização e até legalização do chamado uso recreativo (ou uso social) de substâncias que até então eram ilegais. O Instituto Igarapé tem uma importante plataforma, o Monitor de Política de Drogas nas Américas, que mostra as principais reformas mundo afora nas políticas de drogas, com os diferentes caminhos que migram de uma política de tolerância zero para um enfoque de saúde pública. É o que o Igarapé chama de “soluções mais humanas e eficientes”.
Entre 2008 e 2016, a fundadora do Igarapé, Ilona Szabó, integrou duas comissões internacionais lideradas pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e compostas por líderes globais e ex-chefes de Estado. Os estudos produzidos à época mostraram o quanto as políticas de drogas atuais causaram muito mais danos do que o consumo de drogas em si. Policiais enxugam gelo, pessoas negras são vitimizadas, dependentes químicos e famílias deixam de ter opções de tratamento, entre muitas outras sequelas.
No Brasil, o julgamento pelo STF é um importante avanço, embora incompleto. “Descriminalizar o porte, como os ministros tendem a aprovar, não significa a legalização da droga”, explica o advogado João Gabriel de Carvalho. “A mudança é pegar uma conduta que hoje é considerada crime — portar drogas para uso pessoal, prevista no artigo 28 da Lei de Drogas — e transformar numa conduta que não mais será considerada crime”, diz ele, que é membro da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis Sativa, integra a Comissão de Direito do Cânhamo Industrial e da Cannabis Medicinal da OAB/DF e tem especialização em direito regulatório pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
A lei a que Carvalho se refere é a Lei 11.343, de 2006. O texto retirou a pena de prisão para casos de posse de drogas para consumo pessoal, mas manteve o uso como crime. O artigo 28 afirma: “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.” Ou seja, o artigo 28 deixou a questão em aberto. E sua constitucionalidade está no centro do julgamento retomado agora.
O caso está no STF desde 2015, quando chegou após recurso da Defensoria Pública de São Paulo depois que um homem foi condenado a dois meses de serviços comunitários após ser flagrado com 3 gramas de maconha dentro da sua cela no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Diadema, na Grande São Paulo. Interrompido naquele mesmo ano devido a um pedido de vista do ministro Teori Zavascki, só agora volta à pauta.
Três ministros já emitiram seu voto. Relator do caso, Gilmar Mendes defende que deixe de ser crime o porte de qualquer droga para uso próprio. Luís Roberto Barroso e Edson Fachin votaram pela descriminalização do porte somente da maconha. João Gabriel de Carvalho questiona essa modulação proposta por Barroso e Fachin: “A Lei de Drogas não especifica quais drogas estão sendo penalizadas, portanto não faz sentido o Supremo tratar da descriminalização de somente uma droga.”
Com um argumento adicional: “A grande discussão em torno da questão é o fato de o direito penal estar punindo uma conduta autolesiva. Uma pessoa que porta para uso próprio não está ferindo um direito de uma outra pessoa, nem causando lesão a uma terceira. Estamos falando de escolhas individuais.”
Há outros argumentos em favor da descriminalização. A principal delas é que, na prática, a lei aumentou a proporção de pessoas presas por tráfico de drogas. Em 2005, segundo dados oficiais, 14% dos presos brasileiros eram acusados ou condenados por tráfico. Em junho do ano passado, esse percentual havia pulado para quase 30%.
Não sem o reforço a estigmas sociais e raciais. Pessoas negras foram consideradas traficantes mesmo flagradas com quantidades significativamente menores do que aquelas que classificaram pessoas brancas como usuárias. Cinco anos atrás, o Instituto Sou da Paz mostrou, por exemplo, que no estado de São Paulo metade dos casos de tráfico de maconha envolvia pessoas portando, no máximo, 40 gramas de erva. O equivalente a dois bombons. Repita-se: dois bombons.
Mudar a lei significa reduzir a pressão sobre o sistema carcerário. (O Brasil tem a terceira maior população carcerária do planeta, atrás apenas de EUA e China.) E essa pressão tem alvo e cor certos. Como afirmou há poucos dias à repórter Fernanda Mena o ex-secretário Nacional de Justiça Pedro Abramovay — diretor para a América Latina da Open Society Foundation — “a não existência de critérios objetivos para distinguir usuários de traficantes é um dos grandes motivos de termos um Judiciário e uma polícia que prendem pessoas em função de sua cor de pele e de seu endereço ser ou não na favela”.
Essa injustiça social esteve no epicentro das reivindicações do grupo que foi à Avenida Paulista, em São Paulo, no último sábado 17, na Marcha da Maconha. Com o mote “Antiproibicionismo por uma questão de classe — Reparação por necessidade”, o manifesto da marcha este ano expôs a urgência do fim da guerra às drogas. E convidou as pessoas a um ato de desobediência civil pacífica, oferecendo 50 mil sementes da planta de cannabis.
“A semente é o início de tudo. Ela pode ser a chave pra começarmos hoje a socialização e reparação histórica necessárias que tanto queremos para corrigir as injustiças raciais e econômicas geradas pelo proibicionismo”, diz o manifesto lançado no sábado.
Presente à Marcha, o advogado João Gabriel de Carvalho reforça a ideia de que se trata de um movimento mais amplo. “Não são apenas pessoas pregando o direito ao uso adulto e social, com a defesa da liberdade para portarem a maconha ou outras drogas. É um movimento que envolve associações que trabalham para o uso medicinal e científico da cannabis. São pessoas e organizações dispostas a discutir seu uso, em benefício de pacientes que precisam do óleo caseiro produzido com a Cannabis sativa para tratar de doenças como epilepsia, Alzheimer, mal de Parkinson, entre outras.”
Essa é uma frente que tem avançado, inclusive em setores conservadores. O erro, diz ele, será tentar separar os debates: permitir o avanço na agenda do uso medicinal da cannabis e frear o avanço no uso social. “O movimento global antiproibicionista abrange tudo, porque se separarmos estaremos preservando especialmente a discriminação de pessoas negras nas periferias”, afirma Carvalho.
Para quem acha que a sociedade brasileira não está preparada para tanto, vale lembrar uma fala do ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida: “Não, a sociedade brasileira não está preparada para isso”, ele reconhece, para emendar em seguida: “Mas é tarefa do Estado brasileiro preparar a sociedade para isso”. Não é achismo nem opinião, diz Almeida. É ciência.