Quem quiser pode ir buscar a inspiração para esta crônica no atual protagonismo político de gente como José Sarney, Paulo Maluf e réus do mensalão. Mas ela não deixa de ser também uma pequena fábula sobre o poder das palavras. No caso, do adjetivo famigerado, que tem duas caras: seu significado original é “famoso, notável”, mas é seu sentido corrente, negativo, que se usa “em dia-de-semana”, como diz Guimarães Rosa no delicioso conto Famigerado, do livro “Primeiras estórias”.
O conto começa tenso, com um desconhecido mal-encarado batendo à porta do narrador, homem culto. Os receios do dono da casa crescem quando o estranho se identifica como Damázio, matador famoso naquelas bandas. Após algumas linhas de suspense, o valente revela que deseja apenas consultá-lo sobre o sentido de uma palavra: fasmigerado… faz-me-gerado… falmisgeraldo… familhas-gerado…. “É nome de ofensa?”, quer saber Damázio.
E de repente, mal tendo saboreado seu alívio, o narrador descobre que foi investido do poder de decidir sobre a vida e a morte de um homem. Dependia de sua resposta o destino do coitado que chamara o matador por aquele nome esquisito.
O narrador explica então que famigerado “é ‘importante’, que merece louvor, respeito…”. Damázio fica satisfeito e tudo termina bem. Leitores mais cultos que ele, sabemos que o matador foi enredado numa sutileza semântica. O narrador não mentiu, mas mostrou apenas o lado bom de famigerado, omitindo a face escura que a palavra adquiriu com o tempo: “que tem má fama”.
Uma vitória do conhecimento sobre a força bruta? Sem dúvida, mas uma vitória precária. Para salvar a vida de um desconhecido, o narrador de Rosa hipoteca a sua. E se, após o fim do conto, quando já não estivermos olhando, Damázio descobrir a verdade?