A indústria da saudade por trás de séries da Netflix como ‘Wandinha’
Elas reforçam uma fórmula de ouro: unir nostalgia e originalidade para cativar um público amplo, dos jovens até seus pais

Quando Christina Ricci deu vida à primogênita da Família Addams no cinema, na década de 1990, Jenna Ortega ainda não chegara ao mundo. Nascida em 2002, a estrela de Wandinha descobriu a obra inspirada nos quadrinhos de Charles Addams e na sitcom homônima dos anos 1960 aos 10 anos de idade e cresceu comparada à personagem, com quem compartilha o jeitinho sarcástico. “Meu senso de humor é um pouco estranho às vezes, talvez obscuro demais”, declarou ela certa vez sobre as semelhanças com a protagonista da série que acaba de retornar à Netflix com a primeira metade de sua segunda temporada — os episódios finais chegam em 3 de setembro.

Lançada em 2022, Wandinha se tornou um arrasa-quarteirões instantâneo: é a série em língua inglesa mais vista da Netflix, com 252,1 milhões de visualizações — e instaurou, fora das telas, uma febre de fantasias, festas temáticas e danças que emulam a estética e a personalidade da adolescente ranzinza. Tal fenômeno é fruto de um equilíbrio quase científico entre nostalgia e modernidade, fórmula capaz de atrair diversos públicos e que se mostrou valiosa para a Netflix nos últimos anos. Basta olhar as produções mais vistas da plataforma para atestar que a estratégia funciona: além de Wandinha, o top 10 de séries em inglês tem ainda duas temporadas de Stranger Things e outras duas de Bridgerton, ambos fenômenos do streaming que bebem desse mesmo equilíbrio — e que têm paralelos também com a febre inesgotável dos remakes.

Mestre nessa “ciência”, a Netflix usa e abusa da receita consolidada, mas cada um desses sucessos explora o apelo idílico à sua maneira. Primeiro grande acerto da plataforma na fantasia e ficção científica, Stranger Things finca suas bases na estética oitentista que domina a trama: da trilha sonora ao figurino, a série é ambientada num mundo em que os jovens de hoje não viveram, mas do qual os pais têm lembranças vívidas e saudades e que agora ambos aproveitam juntos diante da TV. Isso porque, em paralelo com a trama sobrenatural, a série dirigida pelos badalados irmãos Duffer também cativa a geração Z com questões típicas do amadurecimento: enquanto lidam com ataques de monstros malignos ao som de velhos hits de Kate Bush, Eleven (Millie Bobby Brown) e sua turma são, antes de tudo, adolescentes tentando sobreviver às dores do crescimento — e é corriqueiro ver fãs fascinados atestando como desejariam ter vivido isso.
No caso de Bridgerton, a relação entre passado e presente é propositalmente mais anacrônica: ambientada na Inglaterra do século XIX, a série baseada na franquia de livros de Julia Quinn pinta uma realidade idealizada de bailes, roupas pomposas e casamentos arranjados que enche os olhos de quem vê — mas que, na realidade, seria moderninha demais para a aristocracia d’antanho. Essa falsificação histórica, no entanto, é calibrada para o público atual: na era das redes sociais, a nostalgia não se sustenta por si só — é preciso que dialogue com a realidade. Por isso, as liberdades femininas e o papel dos negros são ampliados na série, ao mesmo tempo que as festas são embaladas por sucessos atuais do pop “disfarçados” por uma roupagem instrumental clássica.

Todo esse fenômeno, claro, não se restringe à Netflix: a nostalgia é hoje um grande propulsor do entretenimento e alimenta diversas áreas da indústria, do mercado musical até a inesgotável onda de remakes no cinema e no streaming. Impulsionados pela ligação emocional do público com tramas como How I Met Your Mother e Sex and the City, sucessos inquestionáveis de décadas passadas, a Disney e a HBO apostaram em títulos como How I Met Your Father e And Just Like That… para trazer de volta rostos conhecidos e atualizar histórias clássicas. Os “remakes puros”, no entanto, têm vida dura: apesar da tração inicial da nostalgia, tramas que ficam muito presas aos originais acabam datadas e escorregam na moral e no comportamento do mundo de hoje, despertando comparações inevitáveis com o passado — e, quase sempre, decepção.

No caso de Wandinha, o maior acerto da Netflix é justamente o de criar uma roupagem 100% nova para a personagem clássica, em vez de apenas reciclar a A Família Addams como a conhecemos. Outro exemplo bem-sucedido disso é WandaVision, do Disney+, que uniu o atualíssimo Universo Marvel ao passado de maneira inteligente: a série transforma a vida de Wanda (Elizabeth Olsen) e Vision (Paul Bettany) numa sitcom família da década de 1950, com toda a estética e pompa atrelada a isso. A lição que fica é uma só: mais que apostar na mera saudade, é preciso uma boa dose de originalidade para fazer a nostalgia prosperar nas telas.
Publicado em VEJA de 8 de agosto de 2025, edição nº 2956