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Críticas e análises sobre o universo da televisão e das plataformas de streaming
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A nova – e devastadora – visão das séries sobre violência contra a mulher

Da fantasia às tramas criminais, as atrações mostram que a culpa não é mais só do agressor, mas de todos que se omitem

Por Amanda Capuano Atualizado em 4 jun 2024, 12h08 - Publicado em 18 set 2022, 08h00
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  • Rhaenyra Targaryen é uma mulher forte. Aos 17 anos, controla dragões como quem adestra cachorrinhos e é herdeira do cobiçado Trono de Ferro. Aos olhos dos homens dos Sete Reinos, porém, nada disso importa: ela, como todas as outras mulheres ali, é só uma moeda de troca para que os garanhões alcancem suas ambições de poder por meio do casamento. Usada pelo tio e pelo pai ao bel-prazer, a princesa de A Casa do Dragão atesta uma tendência cada vez mais presente nas séries: mais que apenas retratar a violência contra a mulher, as produções atuais destacam o teor sistêmico das agressões a que elas são submetidas. Agora, a violência não decorre só da falta de caráter de um homem, mas de uma sociedade que escolhe fechar os olhos diante dos desmandos masculinos.

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    Exibido recentemente pela HBO, o quarto episódio da série deixa isso ainda mais explícito. Rhaenyra vive uma situação periclitante com o tio, Daemon (Matt Smith), da qual mesmo mulheres com sangue de dragão teriam dificuldade em se livrar sem sequelas. As agruras também atingem sua ex-amiga e rival Alicent (Emily Carey). Casada com o rei para atender aos desejos do pai ambicioso, a personagem é requisitada pelo marido no meio da noite, e acaba atendendo ao chamado a contragosto — afinal, sua função como esposa é dar prazer e herdeiros ao rei, mesmo que isso signifique entregar-se a uma relação que mais parece estupro. Fruto da mente provocativa de George R.R. Martin, a sociedade de Westeros impõe às suas mulheres uma ideia falsa de consentimento: criadas para servir aos desejos masculinos, elas não têm outra escolha a não ser cumprir com o seu dever e “consentir” com o ato, ainda que contra sua vontade.

    LUTA INGLÓRIA - Bom Dia, Verônica: a anuência da sociedade com a violência -
    LUTA INGLÓRIA - Bom Dia, Verônica: a anuência da sociedade com a violência – (Laura Campanella/Netflix)

    Mesmo longe dos domínios da fantasia, a coisa não fica mais fácil para elas. Uma visão mais complexa e politizada do abuso contra a mulher permeia novas produções dos mais diversos gêneros. Sucesso nacional da Netflix, Bom Dia, Verônica apresenta uma trama criminal envolvente. O verdadeiro tema, porém, acaba sendo a violência contra a mulher. Em suas duas temporadas, a série ilustra bem o alcance da recente mudança de enfoque sobre o problema. Na primeira, a agressão ficou centralizada na loucura de um único homem, Brandão (Du Moscovis), policial que agride a esposa e mata outras mulheres por prazer. O trato é semelhante ao dado na série Você, outro hit da Netflix que mostra a violência contra a mulher sob a óptica de um psicopata que age por puro sadismo. Já na temporada mais recente de Bom Dia, Verônica, a visão se amplia. Reynaldo Gianecchini faz um líder religioso que abusa de fiéis e da própria filha, vivida por Klara Castanho — e sua impunidade se sustenta sobre o machismo arraigado. As barbaridades se propagam como um vírus com a anuência da igreja, da polícia e de todos que se recusam a acreditar na palavra das vítimas, já que os agressores são “homens de bem” supostamente perseguidos por mulheres malucas.

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    Inspirada em histórias reais, a também brasileira Não Foi Minha Culpa, do Star+, traz o tema com um realismo visceral: não há costumes medievais ou psicopatas, apenas a realidade nua e crua da misoginia. Reunindo vários casos, a produção mostra que, não raro, o entorno decide olhar para o outro lado e seguir com a vida enquanto mulheres são agredidas. “Agressivo, o Fernando? Boa-pinta daquele jeito?”, diz um dos personagens. “Deixa para lá, minha filha, casal é assim mesmo”, comenta uma vizinha, enquanto ouve uma discussão violenta no apartamento da frente.

    AGRURAS FEMININAS - The Handmaid’s Tale (à dir), Maid (à esq., no alto) e Não Foi Minha Culpa: visões da violência que se propaga como um vírus -
    AGRURAS FEMININAS - The Handmaid’s Tale (à dir), Maid (à esq., no alto) e Não Foi Minha Culpa: visões da violência que se propaga como um vírus – (Ricardo Hubbs/Netflix/Star+/Sophie Giraud/HULU)

    Mesmo quando as vítimas conseguem se livrar do ciclo de agressões, a violência segue presente na vida delas. Na série americana Maid (Netflix), Alex (Margaret Qualley) foge de casa com a filha pequena após sofrer uma série de abusos psicológicos. Sem formação nem apoio, vai trabalhar como faxineira para garantir o sustento da filha, e precisa de determinação para não ceder aos julgamentos e voltar com o marido abusivo.

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    Nenhuma outra produção, porém, leva o tema às últimas consequências como The Handmaid’s Tale — cuja quinta temporada estreia no Para­mount+ neste domingo, 18. Inspirada na distopia de Margaret Atwood, a série retrata um mundo onde a violência contra a mulher não apenas tem anuência da sociedade como foi institucionalizada pelo governo. É um alerta extremo, mas instrutivo, de onde podemos chegar se continuarmos fechando os olhos para o problema.

    Publicado em VEJA de 21 de setembro de 2022, edição nº 2807

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