Com o surgimento das plataformas de streaming, o mercado de entretenimento está ficando mais competitivo, já que opções de séries, novelas e filmes são infinitas. A Globo, maior emissora da América Latina, tem mudado seu modelo de negócio até com funcionários. Antes preocupada em ter um elenco exclusivo, fechando contratos a longo prazo, a líder de audiência percebeu a chegada dos novos tempos e passou a não renovar esses acordos, liberando diversos artistas, autores de novelas e apresentadores para o mercado. Constatou, enfim, a vantagem financeira de contratar esses profissionais de forma avulsa, por obra, ao mesmo tempo em que abriu margem para que a agora ampla concorrência pudesse produzir obras tão atrativas quanto aquelas com o selo Globo.
Com isso, os telespectadores e fãs de novelas aguardam ansiosamente para ver o que os autores vão colocar no ar no streaming. Novelas são esperadas, por exemplo, no streaming HBO Max, que pretende lançar uma trama escrita por Raphael Montes em breve. Há a expectativa de que a história tenha uma quantidade de capítulos bem inferior à de um folhetim padrão, assim como a próxima história de João Emanuel Carneiro, feita exclusivamente para o Globoplay. Em entrevista a VEJA, Mauro Alencar, doutor em Teledramaturgia Brasileira e Latino-americana pela Universidade de São Paulo (USP), explica que a tecnologia avançou muito, mas que a produção de novelas tem se adaptado à necessidade de se renovar apenas copiando um tanto das fórmulas de sucesso do passado. Nem as prometidas tramas curtas são exatamente uma novidade. Além disso, o especialista também analisa o fenômeno de Pantanal, obra escrita por Benedito Ruy Barbosa em 1990 e adaptada por Bruno Luperi em 2022.
Confira:
Qual é o futuro da novela na era do streaming? Dentro da Quarta Revolução Industrial, o streaming está alterando completamente o consumo da arte. Entretanto, o formato dos gêneros dramáticos permanece, ainda que seja certo que necessitarão se adequar à nova plataforma. Telenovela, minissérie, séries de ficção existem praticamente desde o surgimento da televisão mundial, basicamente na década de 1950. A telenovela foi acompanhando o tempo, as novas tecnologias. Radionovela, depois teleteatro, aí telenovela ao vivo, veio a novela gravada em videoteipe, e depois em cores. Mas sempre uma telenovela, produto genuíno da TV aberta. A novela certamente também deverá ser consumida no streaming e seguirá sua história na TV aberta, no celular, no computador etc. O que importa basicamente é uma história bem contada e bem produzida.
Os serviços de streaming devem acabar produzindo novelas mais curtas para se adaptar a um público acostumado com as séries? Nessa era do streaming, prevejo tramas mais curtas, sim, em torno de 50 capítulos. Mas não que isso signifique histórias aceleradas, por favor. Cada qual com sua especificidade de tempo e espaço, com vigor criativo. E vale aqui um importante registro. Nas décadas de 1950 e 1960, diversas novelas eram contadas em torno de 50 a 60 capítulos. Percebe como querem inventar algo que já existia? E mais: a Globo lançou, e com muito alarde, a faixa das 18h em 1975 avisando aos telespectadores que passaria a produzir no horário novelas mais curtas, em torno de 20, 80 capítulos. Escrava Isaura, com 100 capítulos, já foi uma exceção. Portanto, eis o resumo da história e da produção cultural: a era do streaming volta a beber na fonte das origens da telenovela não apenas brasileira, mas da América Latina. Decerto, respeitando ritmo e temática dentro de nosso tempo e espaço social.
O remake de Pantanal tem feito sucesso agora em 2022. Por que a original, de 1990, é tão importante para a história da dramaturgia? São vários os fatores que tornam Pantanal uma novela tão relevante hoje, trinta anos após a sua exibição original. O bioma do Pantanal abrange, além do Brasil, a Bolívia e o Paraguai, com a maior parte em terras brasileiras. Dentro desse exuberante cenário natural, a impactante história de Benedito Ruy Barbosa é recheada de personagens míticos que se misturam com a natureza, com o paraíso selvagem, propiciando a nós espectadores a possibilidade de uma vida ao mesmo tempo repleta de ação, suspense e serenidade. Faço aqui um paralelo com o mito do “bom selvagem”, de Rousseau, em que a sociedade é responsável por incutir no ser humano hábitos que conduziriam aos conflitos e problemas. É onde encontramos o conflito central – selvagem e urbano – representado pelos personagens Juma e Jove, respectivamente. Pantanal significou o paroxismo em termos de novela ecológica. É preciso salientar que Pantanal trouxe uma nova linguagem para as telenovelas com sua trama mítica, que nos leva ao fantástico e lendário.
Tem percebido diferenças entre a versão original e o remake? É natural que exista uma adaptação audiovisual, como a não relevância da nudez que tanto impactou a produção de 1990 de um país recém-saído da censura que era o Brasil. Do mesmo modo, a personagem Guta, por exemplo, ganhou novos contornos à luz da contemporaneidade. Ou seja, atualizam-se questões comportamentais, mas a base da história e o ritmo da narrativa dos diálogos permanecem, são mais longos e encontramos cenas mais contemplativas do que o habitual. Daí a importância de se obedecer à base da história.
Como enxerga a adaptação que Bruno Luperi da obra original de seu avô, Benedito Ruy Barbosa? Esse clássico eterno da Rede Manchete merecia um remake à altura da produção original. E o Bruno Luperi tem feito uma leitura fidedigna ao universo de seu avô. Ou seja, é a base da novela em nova produção, mas o magnetismo imagético das personagens criadas pelo autor original estão presentes.