A razão da aposta em franquias frustrantes como O Senhor dos Anéis
A série é pouco empolgante, mas isso é o de menos para a Amazon: derivados de grandes franquias viraram armas valiosas na guerra do streaming
A saga O Senhor dos Anéis, do britânico J.R.R. Tolkien (1892-1973), é vasta e complexa, e sua recriação no cinema ou na TV sempre foi um desafio, tanto pelos inúmeros detalhes criados pelo escritor quanto pela cobrança dos fãs. Nos anos 2000, Peter Jackson cumpriu com louvor a missão e transformou a história, antes restrita a um nicho de fanáticos por literatura fantástica, em arrasa-quarteirão das telas. Numa iniciativa bilionária, o Amazon Prime Video adquiriu os direitos da obra e lançou em 2022 a série O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder, numa aposta de levar para a TV uma parte da história que não chegou a ser concluída por Tolkien, baseada apenas em notas de rodapé e, portanto, aberta a inúmeras interpretações. Não deu outra: mesmo com toda a grana envolvida, a primeira temporada teve apenas 38% de avaliações positivas dos fãs no Rotten Tomatoes (site agregador de opiniões). Como a série deixou a desejar em relação aos filmes de Jackson, muita gente se apressou em proclamar que a Amazon havia quebrado a cara ao investir em um capricho de seu dono, Jeff Bezos — mas isso é pura ingenuidade. Manter em seu catálogo grandes franquias já testadas no cinema e com público fiel se tornou o novo graal na duríssima guerra do streaming pela conquista de assinantes.
Embora não tenha recebido boas resenhas, Os Anéis de Poder registrou a maior estreia da história do Prime Video. Razão mais que suficiente para redobrar a jogada numa segunda temporada, que acaba de estrear no Amazon Prime Video (estão previstas, no mínimo, outras três). “Tivemos sorte em ter a Amazon compartilhando conosco a paixão por esse mundo e nos dando recursos para fazer a saga da maneira mais luxuosa possível”, disse a VEJA o produtor-executivo J.D. Payne. Infelizmente, apesar das boas intenções, a nova fase segue a toada lenta e insone da anterior. Nem o esmero dos produtores ao recriar os recantos mais asquerosos de Barad-dûr, mundo dos orcs, as intrincadas profundezas das minas de Khazad-dûm, o reino dos anões, e até as mais deslumbrantes paisagens de Lindon, terra dos elfos, conseguiu levar a segunda temporada ao nível dos filmes de Peter Jackson.
Aprovem os críticos ou não, fato é que se tornou estratégico para os serviços de streaming ter grifes de peso que atraiam espectadores quase por inércia. A Disney+, com seus 111,3 milhões de assinantes, se ancora em Star Wars e no multiverso da Marvel, e produziu duas dezenas de novas séries e filmes dessas franquias exclusivamente para seus catálogos on-line. Sua maior audiência do ano não veio dos clássicos infantis da Disney ou da Pixar, mas da série The Acolyte, do universo Star Wars, uma das produções mais caras da plataforma, com custos estimados em 118 milhões de reais por episódio e que teve 4,8 milhões de visualizações dos dois primeiros episódios apenas no dia do lançamento. A Max, do grupo Warner Bros. Discovery, que conta com 97,7 milhões de assinantes, se segura com os poderosos dragões de Game of Thrones e em 2026 expandirá seu catálogo com um desembarque barulhento: uma série que reconta a história das sete obras de Harry Potter, com uma temporada por livro.
Nessa seara, curiosamente, a Netflix ainda corre atrás das rivais. A plataforma logo entendeu a importância de ter franquias como essas e tenta achar uma âncora potente. Mas sem sucesso até agora: The Witcher se revelou uma furada e Rebel Moon é cópia pálida de Star Wars. Mesmo mantendo sua posição como líder global no streaming, com 260 milhões de assinantes, a Netflix ainda não tem um universo poderoso para chamar de seu, o que pode cobrar seu preço no futuro. Na batalha desse mercado, não basta dinheiro: é preciso cada Jedi, dragão, mago, bruxo e elfo disponível. Eles são verdadeiros donos do universo.
Publicado em VEJA de 30 de agosto de 2024, edição nº 2908