Durante a pandemia, Charlie Brooker — como tantos mortais pelo globo — viu-se de repente trancado em casa sem ter o que fazer. Um dos mais sagazes roteiristas da TV britânica, ele vivia então um interregno na produção de seu “filhote” mais famoso, a série Black Mirror — fenômeno da Netflix que explora, a cada episódio, uma trama distópica sobre a era da alta tecnologia e das redes sociais. Para aplacar o tédio, Brooker rendeu-se a um prazer que fisgou muitos espectadores no isolamento: assistir às viciantes séries de true crime, documentários que reinvestigam assassinatos e outros casos policiais notórios. O tempo investido não foi perdido: Brooker extraiu da experiência aquele que é possivelmente o melhor episódio da sexta temporada de Black Mirror, que estreou no streaming há duas semanas. Em Loch Henry, porém, ele não faz exatamente uma homenagem ao gênero televisivo que tanto o entreteve: ao falar sobre um jovem escocês que decide remexer numa antiga tragédia de sua localidade para faturar com uma série documental, Brooker empreende uma crítica sobre os perigos de transformar crimes que destruíram vidas reais em entretenimento.
É com esse olhar peculiar, capaz de desnudar contradições e riscos por trás de avanços tão integrados à paisagem atual quanto os celulares ou o streaming, que Brooker conquistou o trono de oráculo pop. Seu reinado balançou em 2019, é verdade, quando a decepcionante temporada anterior de Black Mirror despertou temores de um esgotamento da fórmula. Mas, com três de seus cinco episódios entre os melhores que já fez, a nova fornada repôs o programa nos eixos — e no ranking de audiência da Netflix. “Quando a série surgiu, não havia tantos programas que suspeitavam da tecnologia. Hoje são muitos, então um dos desafios é diferenciar Black Mirror dos outros”, disse Brooker a VEJA.
Lançada em 2011 no britânico Channel 4 e comprada pela Netflix em 2015, Black Mirror se consolidou com tramas que levam os efeitos colaterais da tecnologia à última potência — o “espelho preto” do título é referência às telas dos computadores, TVs e smartphones. O trabalho, no entanto, está longe de ser calcado em previsões sobrenaturais: é resultado de uma observação atenta da realidade. Em um dos episódios mais famosos de temporadas anteriores, a obsessão por aprovação nas redes deságua numa realidade em que a existência humana é avaliada com base em likes.
Na nova leva, o perturbador Beyond the Sea, com Aaron Paul, imagina a possibilidade de astronautas passarem longos períodos no espaço enquanto podem se transportar para réplicas de seus corpos, que levam vidas normais na Terra — duplicidade que cobra alto preço moral. Nem a Netflix escapa de alfinetadas: em A Joan É Péssima, uma mulher descobre que sua vida foi vertida em série por um streaming ganancioso chamado Streamberry — desenhado, de forma autorizada, a partir da plataforma. “É estranho pensar nas pessoas assistindo a isso na Netflix”, diz Brooker.
Nascido em Reading, na Inglaterra, Charlton Brooker foi batizado em homenagem a um personagem fortuito da sitcom A Feiticeira, da qual os pais eram fãs nos anos 1970. A relação com a tecnologia começou cedo, por meio dos videogames. Brooker estudou comunicação, mas acabou não se formando porque a universidade não aceitou uma dissertação sobre jogos. Na carreira artística, foi de cartunista a roteirista de séries satíricas. Antes de Black Mirror, escreveu Dead Set, sobre um apocalipse zumbi dentro da casa do Big Brother.
A nova idade das trevas: A tecnologia e o fim do futuro
Para o criador de 52 anos, o desafio é que a realidade hoje teima em ser mais distópica que a ficção. Em 2016, três anos após fazer um episódio em que um personagem de desenho animado populista concorria ao Parlamento, o americano Donald Trump chegou ao poder — e o Twitter da série fez um post esclarecendo que não se tratava de um novo Black Mirror. Na nova temporada, tentou usar a inteligência artificial para bolar um programa. Foi um fiasco: o ChatGPT só reciclou tramas de sua autoria “sem um pingo de originalidade”. Ser profeta do apocalipse não é para qualquer um.
Publicado em VEJA de 28 de Junho de 2023, edição nº 2847
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