House of Guinness: a saga surpreendente por trás de uma cerveja lendária
Série celebra o poder da bebida como propulsora da economia e da história

Entre os símbolos pop da Irlanda estão a literatura de Oscar Wilde e James Joyce, o rock do U2 e, claro, a Guinness. Nem sempre, contudo, a cerveja preta do tipo stout, famosa pelo sabor amargo, foi unanimidade em seu país. É o que ensina a série House of Guinness, que acaba de chegar à Netflix. Assim que se anuncia a morte de Benjamin Guinness, neto do visionário que fundou a marca em 1759, um belo quebra-quebra se arma em Dublin para melar o funeral. Embora responsável pelo salto que fez da Guinness a maior cervejaria do mundo no final do século XIX, Benjamin tinha tudo que a maioria dos irlandeses detestava: era um protestante elitista que defendia a submissão do país à vizinha Inglaterra, enquanto as massas empobrecidas tinham tradição católica e abominavam os ingleses. Com ajuda de seus capangas, os Guinness debelam a pancadaria insuflada pela Irmandade Feniana, movimento que lutava pela independência da Irlanda. Dessa forma, as coisas voltam à situação paradoxal de sempre: os pobres que odeiam a família continuarão a enriquecê-la, ao consumir mais e mais sua bebida.
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A história pouco conhecida do clã que fundou a Guinness revela-se um prato cheio para uma série do streaming — ainda mais quando a tarefa de levá-la à tela cabe a um craque como Steven Knight, roteirista britânico por trás da estupenda Peaky Blinders. Se essa última apresentava a saga das gangues da cidade inglesa de Birmingham na virada do século XX, House of Guinness recorre ao mesmo virtuosismo narrativo — com coreografias de época turbinadas por uma trilha de rock e rap — para falar das intrigas entre os herdeiros da empresa. “Assim que conheci a vida deles, percebi que era uma história que precisava ser contada. Os próprios fatos reais já eram um roteiro para um grande drama”, disse Knight em entrevista a VEJA (leia mais).

As relações entre os quatro filhos de Benjamin lembram um pouco Succession, mas também um tanto do novelão Downton Abbey, com seus códigos aristocráticos. A diferença é que eles espelham pessoas que existiram na vida real — e seus retratos, mesmo com licenças poéticas, vêm de fonte fidedigna: a série se embasa em reminiscências familiares de Ivana Lowell, socialite que é descendente do clã. Hoje, os Guinness não controlam mais a cervejaria, que pertence a um conglomerado inglês, mas ainda chamam atenção pela ostentação e pelo comportamento errático. O índice de problemas com álcool e vício na família é alto, a começar das agruras da própria Ivana. Como mostra a série, os Guinness foram, em mais de um aspecto, precursores dos super-ricos de agora.
Ao morrer, o patriarca deixou seu império para dois filhos homens, o primogênito Arthur (Anthony Boyle) e Edward (Louis Partridge). O mais velho, no entanto, era um bon vivant sem tino para os negócios e cheio de tormentos pessoais: gay em uma sociedade repressora, Arthur engatou um marriage blanc — casamento de fachada — com uma nobre falida. Enquanto ele tinha seus affairs masculinos e investia numa carreira política no Partido Conservador, dando continuidade à tradição real dos Guinness de ocupar postos de poder na Irlanda e até no parlamento inglês, ela ia para a cama com o capataz brutamontes da família, Rafferty (James Norton). Quem tinha talento mesmo para os negócios era Edward. Na história de verdade da Guinness, foi ele quem levou a cervejaria ao auge, ao ampliar suas exportações para países como os Estados Unidos. Os outros dois irmãos são figuras que pagaram o preço das convenções rígidas da época. Anne (Emily Fairn) não teve direito a herdar o negócio por ser mulher, mas foi importante em estabelecer a fama dos Guinness como grandes filantropos — de casas populares ao financiamento da restauração da Catedral de São Patrício, em Dublin, eles lustraram o sobrenome com bondades. Por fim, o caçula Benjamin (Fionn O’Shea) também ficou de fora da herança polpuda por ser um beberrão caótico.

As situações picantes envolvendo os herdeiros são a moldura folhetinesca para aquela que é a verdadeira sacada de House of Guinness: mostrar como o consumo das bebidas alcoólicas ao longo dos séculos, em especial a popular cerveja, foi um fator capaz de impactar a história e a vida social. Inventada há mais de 6 000 anos na Mesopotâmia, ela embalou as hordas de bárbaros que invadiram Roma, aplacou a dureza do dia a dia das massas proletárias e, acima de tudo, fez girar a economia de países como a Irlanda. Os altos investimentos da cervejaria mudaram a paisagem de Dublin, enquanto a bebida ganhava adeptos entre os sobreviventes da Grande Fome no interior do país e num mercado distante e promissor, os Estados Unidos.
Na série, o avanço rumo ao território americano ganha uma dose de fantasia: Edward firma um acordo secreto entre a empresa e seus inimigos da Irmandade Feniana para facilitar o acesso aos portos dominados por eles também do outro lado do Atlântico — para onde tantos irlandeses pobres emigraram. No meio dessa aproximação, desenvolve uma relação, digamos, produtiva com uma das líderes do movimento pró-independência, a fictícia (e gatíssima) Ellen Cochrane (Niamh McCormack). Não há notícia de que esse tipo de pacto tenha acontecido de fato. Mas algo é inegável: nas mãos dos Guinness, a mistura de cevada, malte e lúpulo se revelou ouro. Um brinde amargo à sua história.
Publicado em VEJA de 25 de setembro de 2025, edição nº 2963